segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Mapa do Amor, Ahdaf Soueif



Continuando com a idéia de ler literatura árabe contemporânea, nesta semana é a vez do romance “O Mapa do Amor”, da egípcia Ahdaf Soueif (foto), uma bela mistura entre lirismo e política no Oriente Médio, por meio do contraste entre dois casais de apaixonados, no início do século XX e no fim da década de 1990, quando o livro foi publicado.

O enredo é dominado pela paixão entre dois aristocratas, a inglesa Anna e o egípcio Sharif, que se conhecem no Cairo no turbulento contexto da consolidação do poder britânico sobre o Egito. Anna é a jovem viúva de um militar que morreu na campanha para derrotar a rebelião islâmica no Sudão. Sharif, um líder nacionalista que luta pela autonomia de seu país.

O Egito nunca foi formalmente uma colônia britânica, mas a experiência de dominação foi semelhante. Oficialmente parte do Império Otomano, desde meados do século XIX o país era governado por um soberano, o quediva, com poucos laços concretos de vassalagem ao Sultão em Constantinopla. Os governantes egípcios lançaram ambiciosos projetos de modernização, como a construção do Canal de Suez, que os deixaram completamente endividados. Britânicos e franceses ganharam grande influência no país a partir do controle de suas finanças públicas e a ocupação militar da Grã-Bretanha começou após uma rebelião nacionalista em 1882.



Soueif faz de Sharif filho e sobrinho de líderes dessa revolta, e ele tenta encontrar maneiras de aproveitar ao máximo os espaços de liberdade criados pelos britânicos, como jornais, tribunais e um arremedo de parlamento, para defender a causa do Egito. Anna, uma aristocrata não-convencional e algo rebelde, revela-se uma parceira entusiasmada de seu projeto, enquanto ambos enfrentam a desconfiança da colônia européia no país.

Quase cem anos depois, as cartas e o diário de Anna são descobertos por Isabel, uma de suas descendentes, que vive em Nova York e apaixona-se por um músico egípcio, Omar, também parente distante de Anna. Ele lhe aconselha viajar ao Egito para descobrir os detalhes do documento e lá ela torna-se amiga íntima de Amal, irmã de seu namorado e as duas viajam pelo país e pela história, enquanto a política egípcia passa pelas dificuldades da ascensão dos radicais islâmicos e da repressão desmedida e injusta do governo de Mubarak.

O romance explora com habilidade as analogias entre os dois momentos do Egito e do Oriente Médio, ressaltando semelhanças como a questão palestina. Sharif se preocupa com o início da colonização sionista da região, que vê de modo semelhante aos projetos imperiais dos britânicos. Omar e Amal, filhos de mãe palestina, lamentam o rumo que a região tomou e desconfiam da ação dos Estados Unidos. Soueif também frisa a constante repressão política na história egípcia e fala com nostalgia do período de Nasser, como um tempo de esperança e de mudanças sociais, como reforma agrária.

Em “O Mapa do Amor” a utopia é menos política e mais pessoal, o romance entre pessoas de culturas diferentes oferece mais possibilidades do que os grandes projetos de transformação da sociedade. Uma das cenas mais bonitas é o encontro de Amal com ex-colegas do movimento estudantil da década de 1970, que comentam a ocupação da Praça Tahrir (pois é, desde então...) e como aquilo não levou a nada. Em outra passagem, os acertos imperiais entre Grã-Bretanha, França e Itália levam à invasão da Líbia pelos italianos, detonando o processo que até hoje reverbera naquele país.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A Revolta na Líbia



Cientistas politicos somos treinados para analisar instituições formais como partidos, sindicatos e ministérios, mas o caos na Líbia no que parecem ser os últimos dias do regime de Kadafi exige um outro tipo de interpretação, que leve em conta as tradições tribais do país. A longa ditadura proibiu partidos e associações cívicas, de modo que os vínculos da família estendida são o que restaram como contrapeso ao autoritarismo do Estado.

Relatos afirmam que 90% da Líbia já estaria sob controle dos diversos grupos rebeldes, incluindo duas das três maiores cidades do país, Benghazi e Misurata. Kadafi estaria isolado na capital, Tripoli, mas com problemas crescentes por lá, pois a tribo Tarhun, a qual pertencem um terço dos moradores da cidade, abandonou o ditador.

Robert Fisk, o lendário correspondente internacional do Independent, conseguiu chegar a Tripoli e envia reportagens sobre o estado fantasmagórico da capital líbia. Segundo ele, predomina o sentimento de que Kadafi está acabado.

As Forças Armadas estão divididas e marcadas por deserções, motins e estagnação. Muitos oficiais se recusam a cumprir as ordens de Kadafi em atacar a população civil. Para além das considerações éticas dos militares, a relutância vem do fato de que essas instituições foram formadas a partir do recrutamento de líderes tribais. Em momentos de crise aguda como este, as lealdades familiares falam muito alto. Não é a primeira vez, na década de 1990 a tribo Warfala tentou um golpe militar contra Kadafi.

Ao contrário de Mubarak (Egito) ou Ben Ali (Tunísia), Kadafi nunca foi homem da confiança do Ocidente e nas décadas de 1970-90 era um adversário odiado por seu apoio a grupos radicais. Tentou se reinventar nos últimos anos, oferecendo a isca de lucrativos contratos econômicos, mas as boas relações foram temporárias. As declarações das autoridades dos Estados Unidos e da União Européia estão um nível acima na crítica a Kadafi do que foram com seus colegas ditadores.

A rejeição internacional se intensificou com a deserção de vários diplomatas líbios na ONU, EUA e Europa, que pedem intervenções do Conselho de Segurança, com a decretação de uma zona de exclusão aérea que proíba os bombardeios contra a população civil. Isso foi feito no Iraque de Saddam Hussein, para proteger os curdos no norte do país. Tenho dúvidas se é boa idéia na Libia, pois uma ação estrangeira contra Kadafi poderia detonar uma onda de nacionalismo xenófobo na região, com consequências imprevisíveis nestes meses de revoltas.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Edifício Yacubian



Decidi começar a ler literatura árabe contemporânea, porque cheguei à conclusão de que somente por meio dos artistas entenderei os anseios, desejos e insatisfações que originaram as revoltas democráticas que varrem a região, do Marrocos ao Iêmen. O primeiro romance da minha lista foi “O Edifício Yacubian”, do egípcio Alaa Al Aswany. Publicado em 2004, tornou-se rapidamente um sucesso internacional e foi adaptado para o cinema. É fácil compreender por quê: seu painel de personagens retrata de maneira brilhante os impasses do Egito nos anos finais da ditadura de Mubarak.

O Edifício Yacubian existe (foto), é um prédio no centro do Cairo construído durante a monarquia por um milionário armênio como um conjunto residencial para as famílias da elite cosmpolita da cidade. Os anos foram impiedosos com o Yacubian. As comunidades estrangeiras fugiram ou foram expulsas do país pelo regime militar, oficiais do Exército ocuparam apartamentos e o telhado foi favelizado e transformado num centro de pequeno comércio. Os novos ricos trocaram o centro por subúrbios nos arredores da capital e o Yacubian ficou como um símbolo da decadência do Egito. O autor teve um consultório dentário no prédio.



A beleza do romance de Aswany é capturar o mosaico de figuras humanas cômicas, tristes e trágicas que circulam pelo edifício e formam um microcosmo da sociedade egípcia contemporânea. O mais cativante personagem é Zaki Beki el Dessuqi, um aristocrata que tenta manter os hábitos de playboy da monarquia, dedicando-se às mulheres e tentando encontrar um pouco de beleza e suavidade em meio ao declínio que o cerca. Seus diálogos com a jovem amante, que sonha em deixar o Egito, são o melhor do livro:

“Não consigo entender sua geração. Na minha época, o amor pelo próprio era como uma religião. Muitos jovens morreram lutando contra os britânicos.”
“Vocês fizeram manifestações para expulsar os britânicos? Certo, eles se foram. Isso significa que o país está bem?”

Outro bom personagem é Taha el Chazli, o inteligente e compenetrado filho do porteiro do edifício, que vê sua ascensão social barrada pela falta de conexões pessoais com as elites e pela corrupção e violência do regime, e se envolve com um grupo radical islâmico. Impressionam as descrições sobre a ação dos fundamentalistas nas universidades egípcias, agindo sobre os migrantes rurais e os jovens pobres que pela primeira vez chegam ao ensino superior.

Em certos trechos do romance, os personagens soam um tanto forçados, como a figura de Hagg Azzam, um empresário rico que resolve ingressar na política sob os auspícios do corrupto partido nacional de Mubarak, ou Hatim Rachid, um jornalista sofisticado e liberal que precisa manter sua homossexualidade em segredo. Mas o efeito mosaico, de pintar o quadro geral do Egito, compensa largamente esses pequenos problemas.

O romance mostra de forma clara as raízes da humilhação e raiva dos egípcios, mas deixou de fora outro elemento essencial das revoltas atuais: a esperança. Entre os personagens, não há nada parecido com os jovens modernos, dinâmicos e versados em tecnologia que foram tão importantes nas manifestações, embora o autor seja um profissional de classe média (dentista) e militante anti-Mubarak. A realidade será sempre mais rica do que a ficção, e ocasionalmente mais bela, como nestes tempos interessantes em que nos coube viver.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O Último Coronel



As ditaduras árabes aprenderam com o sucesso das revoltas na Tunísia e no Egito e apertaram o cerco da repressão, desde o início. Em países como Bahrein e Líbia, o Exército aceitou fazer o trabalho sujo de atirar nos manifestantes, ao contrário do que ocorreu nas duas outras nações. O caso líbio é bastante particular. No poder desde 1969, o coronel Muhamar Kadafi é o último representante da geração de militares que depôs as monarquias árabes nas décadas de 1950-60 (Egito, 1952, e Iraque, 1958, foram os demais exemplos) e defenderam um projeto modernizador liderado pelas Forças Armadas. Kaddafi foi um expoente do terceiro-mundismo nos anos 70, foi bombardeado pelos EUA nos anos 80 e no pós-11 de setembro fez um notável esforço de se reaproximar dos europeus, sobretudo da Itália, França e Reino Unido.

As ambições internacionalistas de Kadafi foram alimentadas pelo boom dos choques petrolíferos, pois a Líbia é rica em hidrocarbonetos. Expulsou do país os italianos, ex-colonizadores. Ele interveio em diversos conflitos internos africanos, no Chade, Serra Leoa, Libéria, Marrocos. Financiou o Setembro Negro, o grupo terrorista palestino que assassinou atletas isralenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972. No início, sua ideologia estava mais próxima ao socialismo árabe de Nasser, mas com o correr do tempo foi virando uma mistura que incluía em doses crescentes traços do Islã e o apelo às crenças tradicionais africanas. Ele chegou mesmo a se coroar "rei dos reis" da África.

O patrocínio de Kadafi ao terrorismo lhe trouxe sanções econômicas internacionais e até um ataque aéreo dos EUA, em 1986, que matou uma de suas filhas. O caso de maior repercussão internacional foi sua decisão de abrigar os terroristas que explodiram um avião comercial na Escócia. Em outro incidente, Kadafi aprisionou enfermeiras da Bulgária que faziam trabalhos de caridade na Líbia, acusando-as de injetar o vírus HIV em crianças do país.

Neste novo século, Kadafi tem se aproximado da União Européia, basicamente motivado pelo péssimo estado da economia líbia, fora do setor de hidrocarbonetos, e pelo medo ser incluído nos Eixos do Mal pós-11 de setembro. Abriu seus programas militares às inspeções internacionais (eram consideráveis nas áreas química e biológica). Assinou um importante acordo com a Itália, pelo qual o governo Silvio Berlusconi lhe paga uma indenização por ter colonizado o país, e em troca a Líbia se compromete a controlar a imigração para a Europa - o problema tem se agravado após a revolta na Tunísia, com muitos jovens chegando ao sul italiano. Os franceses também estão presentes no país e o presidente Nicholas Sarkozy afirmou que na África Kadafi não era visto como um ditador, firmando com ele um tratado de cooperação nuclear. Os negócios para as petrolíferas britânicas são tão promissores que elas até conseguiram fazer o governo libertar o único terrorista preso no caso do avião escocês, enviando-o em liberdade para a Líbia. As empreiteiras brasileiras também desfrutam das benesses do regime, construindo o aeroporto da capital e um anel rodoviário em torno da cidade.

Kadafi sendo Kadafi, sua abertura ao ocidente nunca foi ortodoxa. Em visitas à Europa, conclamou os habitantes locais a se converterem ao Islã. Ensinou a Berlusconi técnicas de dança executadas por seu harém, reproduzidas com sucesso nas festas do premiê italiano. E, como todo ditador contemporãneo que se preze, procurou reproduzir a fórmula de chinesa de reforma econômica com fechamento político. Falou até em legar o poder para seu filho, mantendo o trono na família como na Síria e como Mubarak tentou fazer no Egito. O rapaz discursou na TV estatal líbia no domingo, elaborando uma teoria da conspiração que culpava estrangeiros e mídia pela revolta.

As manifestações anti-Kaddafi explodiram na cidade de Benghazi, na qual os laços de solidariedade tribais são muito fortes e funcionam como contraponto à pressão do Estado autoritário. A capital, Tripoli, tem se mantido fiel ao regime e houve mesmo desfiles de homenagem a Kadafi, nos quais o próprio participou. A sociedade líbia é uma das mais fechadas do mundo e o ditador proibiu a presença da imprensa internacional, derrubou a Internet e baniu a Al-Jazeera. Os movimentos de oposição líbia, ainda assim, têm conseguido usar a rede para divulgar sua revolta contra o regime, mas a repressão tem sido muito violenta, com uso de armamento pesado.

Pós-escrito: estive à tarde no Jornal da Globo News, falando sobre a crise na Líbia, com o bombardeio à cidade de Tripoli, e abordando também a situação no Bahrein e no Iêmen.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Bahrein: a revolta dos xiitas e a 5a Frota



É a primavera dos povos árabes e o Oriente Médio e o Norte da África passam pela mais impressionante onda de protestos de sua história: Argêlia, Líbia, Tunísia, Egito, Iêmen e agora Bahrein. Essa pequena ilha, com menos de um milhão de habitantes, tem duas características que lhe dão grande importância: é nação de maioria xiita e sede da V Frota da Marinha de Guerra dos Estados Unidos - a principal base naval americana no Golfo Pérsico.

A maioria dos muçulmanos é sunita, mas os xiitas são maioria no Irã, Iraque, Líbano, Bahrein, Azerbaijão e minoria significativa na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Síria, Paquistão e Afeganistão. O caso do Bahrein é uma combinação étnica explosiva: 70% da população é xiita, governados por uma monarquia sunita, centrada na família Al-Khalifa, que invadiu o país no século XVIII, vinda do Catar. O país tem sido palco de diversas revoltas que mesclam a agenda democrática com a questão religiosa, e isso tornou-se particularmente intenso após a Revolução Islâmica (xiita) no Irã, em 1979, pois os aiatolás tentaram depor o rei do Bahrein.

Na década de 2000, a dinastia Al-Khalifa tentou reformas. Foi criado um parlamento, com poucos poderes, para tentar aproximar o rei dos líderes religiosos e políticos mais importantes. Os cargos mais importantes do Estado seguem exclusivos da família real. As mudanças sociais foram mais impressionantes, com grande difusão da alfabetização, expansão da classe média e aumento da participação feminina na vida pública.

A repressão aos protestos no Bahrein tem sido particularmente selvagem, com execuções sumárias, tortura de manifestantes e um ataque feroz da polícia a uma procissão fúnebre que acompanhava um homem morto no início da revolta. É fácil compreender o medo dos Al-Khalifa: a rebelião não é somente uma ameaça ao regime autoritário, mas à própria monarquia. Além da repressão, o regime adotou medidas heterodoxas para tentar conter a insatisfação popular, como distribuir quase US$3 mil a cada cidadão. Não adiantou.

No Egito, Mubarak era um aliado importante para os EUA por garantir a posição moderada do país com relação a Israel, e conter os radicais islâmicos. No Bahrein, a localização estratégica da ilha a faz crucial como base naval no Golfo Pérsico. Além disso, os Estados Unidos têm péssimo histórico em lidar com os xiitas no mundo muçulmano, com longos confrontos contra os aiatolás no Irã e o Hezbolá no Líbano. Os ditadores sunitas, por contraste, tem sido muito mais dóceis, no Bahrein, Egito, Jordânia e Arábia Saudita.

Um Bahrein democrático sob controle xiita seria um incentivo perigoso para pessoas da mesma fé, seja em países onde são minorias oprimidas (Arábia Saudita), uma força política majoritária, e em ascensão (Líbano, Iraque) e um aliado sedutor onde estão firmemente instalados no controle do Estado (Irã). Seria mais um passo no que Vali Nasr chamou, num livro brilhante, de "renascimento xiita".

No Egito, o prestígio das Forças Armadas junto à população ofereceu uma ótima alternativa à crise política para os Estados Unidos. No Bahrein, essa possibilidade não existe, devido à vinculação dos militares com a família real sunita.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Sombras na Transição



A questão atual no Egito é saber se as Forças Armadas aceitarão implementar as reformas democráticas ou se usarão seu controle sobre o processo de transição para criar obstáculos às demandas dos manifestantes que derrubaram Mubarak. As medidas iniciais da junta militar que assumiu o controle do país mostram o desejo do Exército em frear o ritmo da participação popular e os especialistas têm se mostrados céticos com o compromisso democrático dos militares em, por exemplo, investigar violações de direitos humanos e combater a corrupção dos aliados de Mubarak. Na Tunísia, a transição tem se mostrado difícil, pela permanência em posições de poder de muitos quadros do regime autoritário.

A junta é presidida pelo marechal Mohammed Tantawi, o ministro da Defesa de Mubarak, e considerado ainda mais conservador do que o ditador deposto. Ele se opôs inclusive à abertura econômica que o regime promoveu na última década. Os primeiros atos da junta foram ordenar aos manifestantes que deixem a Praça Tahrir, fechar o Parlamento e abolir a Constituição. Embora fossem instituições do antigo regime, sua exclusão elimina os freios formais à ação das Forças Armadas, o que é preocupante.

Os militares prometem criar comitês com a participação da oposição para elaborar uma nova constituição e realizar eleições em breve. Com votações previstas para setembro, é questionável a necessidade de abolir tantas leis de uma só vez. O melhor seria deixar que um novo parlamento elaborasse a nova carta magna do Egito. O roteiro apresenta semelhanças perturbadoras com a narrativa clássica dos golpes militares na América Latina, embora as Forças Armadas egípcias desfrutem de um forte prestígio junto à população, mantido inclusive ao não reprimirem as manifestações populares.

Outro fator que fortalece os militares é serem, para os Estados Unidos, Israel e União Européia, os grandes fiadores da transição. Aqueles capazes de manter o tratado de paz de Camp David, conter os radicais islâmicos e garantir a estabilidade do país. Isso leva a crer que o governo egípcio irá receber generosa ajuda econômica para lidar com os graves problemas que enfrenta: alta do preço dos alimentos, desemprego, queda no turismo.

Contudo, os manifestantes egípcios têm demonstrado extraordinária capacidade de mobilização, organização e pressão e tais qualidades serão decisivas para garantir que a transição democrática se efetive e que o Egito realize em breve eleições que garantam um governo com legitimidade para implementar as reformas. Atenção às ruas do Cairo, porque o jogo continua.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Argélia e Iêmen: dominós árabes



As revoltas na Tunísia e no Egito marcam o início de uma onda democrática no mundo árabe. O que sabemos de outras transições no sul e leste da Europa, na América Latina e no oeste e sul da África é que tais processos nunca se limitam a um só país. Uma vez iniciados, espalham-se pela vizinhança regional, de acordo com a semelhança das situações sociais e políticas. Desde janeiro tivemos protestos intensos em diversos países árabes e a Economist organizou inclusive um ranking da instabilidade regional (abaixo), baseado em indicadores como peso dos jovens na população total, níveis de corrupção e de autoritarismo. Ótimo para começar o debate, porque a meu ver a revista subestimou o dominó argelino. Falei um pouco sobre o tema na entrevista que dei à Globo News no sábado, mas aprofundo o argumento aqui.



A Argélia tem um potencial ainda mais explosivo do que o Egito, por três razões: 1) O país viveu uma terrível guerra civil na década de 1990, quando 100 mil pessoas morreram em conflitos entre uma ditadura militar e fundamentalistas islâmicos – o Exército deu um golpe para impedir que vencessem eleições nas quais eram favoritos; 2) A tradição de mobilização popular é muito forte, ainda um legado da guerra de independência contra a França, entre 1956-1962; 3) A presença de milhões de argelinos na ex-metrópole colonial faz com que qualquer convulsão política no país repercuta também nas periferias das cidades francesas.

O presidente da Argélia é Abdelaziz Bouteflika, um herói da independência que foi por muitos anos chanceler e figura de proa no Movimento dos Países Não-Alinhados. Foi eleito presidente em 1999, com a promessa de promover a paz e punir os responsáveis por violações de direitos humanos na guerra civil. Tais expectativas foram frustradas e seu governo tem sido marcado por autoritarismo, fraude e perseguições a seus oponentes.

A situação econômica da Argélia é ruim, com muitos desempregados, apesar dos altos dividendos do petróleo e do gás natural. No país fala-se dos “jovens do muro”, os rapazes que passam o dia sem trabalhar ou estudar. Ironicamente, o primeiro posto de alto escalão de Bouteflika foi como ministro da Juventude, em 1962. Vejamos se ele aprendeu algo com a experiência.

Os principais partidos de oposição, a Reunião pela Democracia e o Movimento Sociedade pela Paz (islâmico moderado, embora não oficialmente, pois a lei pós-guerra civil proíbe partidos religiosos) organizaram uma frente ampla contra Bouteflika e lançaram manifestações, reprimidas com violência. Mas o presidente anunciou a revogação da Lei de Emergência, em vigor há 20 anos, que autorizava poderes ditatorais.




O Iêmen é um caso à parte: o mais pobre entre os países árabes, sem uma classe média significativa como na Tunísia e no Egito. Viveu um período turbulento na década de 1960, com separatismo e guerra civil entre um norte tradicional e um sul comunista. O declínio dessa ideologia e a descoberta de petróleo em zonas de fronteira levaram à reunificação do país nos anos 90, sob o comando do atual ditador Ali Saleh.

A família de Osama Bin Laden migrou do Iêmen para a Arábia Saudita na década de 1930 e ele mantém muitos laços no país, tendo inclusive se casado com uma moça de um dos maiores clãs locais, visando ao recrutamento de seguidores. A Al-Qaeda sempre foi muito ativa no Iêmen, onde realizou um de seus primeiros ataques de vulto, contra o destróier americano USS Cole. Nos últimos meses se falou muito a respeito do risco do crescimento do fundamentalismo no país.

Com uma história trágica que parece o cardápio dos radicalismos ideológicos das décadas de 1960-2000, impressiona a opção da população do Iêmen pela democracia e é difícil imaginá-la sem o exemplo da Tunísia. O presidente Saleh anunciou que não concorrerá à reeleição de modo que até por lá sopram os ventos de mudança.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cai o Rei de Espadas, Cai o Rei de Ouros



Nos dias de hoje
É bom que se proteja
Ofereça a face a quem quer que seja

Nos dias de hoje esteja tranquilo
Haja o que houver pense nos seus filhos




Não ande nos bares esqueça os amigos
Não pare nas praças não corra perigo
Não fale do medo que temos da vida
Não Ponha o dedo na nossa ferida... Ah...



Nos dias de hoje
Não lhes dê motivo
Porque na verdade
Eu te quero vivo



Tenha paciencia
Deus está contigo
Deus está conosco
Até o pescoço



Já está escrito
Já está previsto
Por todas videntes
Pelas cartomantes

Está tudo nas cartas
Em todas as estrelas
No jogo dos Buzios
E nas profecias... ah...




Cai, o Rei de espadas
Cai, o Rei de ouros
Cai, o Rei de paus
Cai, não fica nada!!

Composição de Ivan Lins e Vítor Martins, imortalizada na voz de Elis Regina. Um canto para o fim de outra ditadura, neste dia em que somos todos egípcios, e celebramos com eles a queda de Hosni Mubarak. Nos próximos dias, posto sobre as perspectivas da transição e o efeito dominó em outros países árabes.

Dias de Ira



Nesta sexta-feira os manifestantes pró-democracia no Egito anunciam o “Dia dos Mártires”, em homenagem às mais de 300 pessoas que foram mortas nos confrontos com a polícia, em quase três semanas de protestos. O dia promete ser explosivo: ontem o presidente Hosni Mubarak anunciou que não renuncia, num discurso paternalista e autoritário que ignora as profundas transformações em curso na consciência política do país. Seu recém-nomeado vice, general Osman Suleiman, foi na mesma direção, aconselhando o povo a parar de “ver TV via satélite.” O colapso do regime é iminente, com motins até mesmo na mídia estatal, generais visitando os manifestantes na Praça Tahrir do Cairo e defendendo suas demandas e o Conselho Supremo das Forças Armadas fazendo declarações semelhantes. Tudo aponta para um golpe militar contra Mubarak, caso ele não fuja do país.

O clima entre os manifestantes é de indignação, com a raiva aflorando ainda durante o discurso de Mubarak e marchas até os arredores do Palácio Presidencial, em Heliópolis. Durante a semana já haviam acontecido dois desdobramentos importantes nos protestos: a eclosão de uma série de greves, sendo a mais significada a do setor petroleiro, e a manifestação para celebrar a libertação de Wael Ghonim, o executivo do Google preso pelo regime. Algo impressionante num país tão nacionalista quanto o Egito, onde as empresas estrangeiras em geral foram vista como parte do problema. Sinal da relevância das novas tecnologias de informação para as lutas sociais, e de como tornaram-se símbolos da democracia (Bill Gates deve estar morrendo de inveja, mas isso é outra história).

No quadro que se desenha no Egito, as Forças Armadas crescem a cada dia em importância como fiadoras de uma transição à democracia que mantenha a estabilidade no país, controlando grupos radicais e mantendo as alianças internacionais egípcias. Não será um cenário fácil, pois certamente haverá conflitos com movimentos políticos que cobram a punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos durante a longa ditadura e que provavelmente demandarão alterações na diplomacia, no sentido de apoio mais decidido aos palestinos.

A obstinação de Mubarak não diz respeito somente a seu apego ao poder, mas também ao medo de ser preso pela enorme corrupção de seu regime. Sua fortuna é estimada na casa de bilhões de dólares, maior do que o PIB de vários países africanos, e a máquina de negócios escusos abarca muitos líderes e instituições, inclusive as Forças Armadas, que controlam várias fábricas e empreendimentos econômicos.

No entanto, os militares já demonstraram não ter disposição para promover o banho de sangue que seria necessário para encerrar as manifestações. A praça Tahrir não ficou como a da Paz Celestial, na Pequim de 1989. Provavelmente há grande pressão dentro das próprias Forças Armadas, com oficiais mais jovens e de patente mais baixa sentindo-se muito próximos aos participantes dos protestos. Afinal, a monarquia do Egito caiu em 1952 pela ação dos coronéis, desgostosos com a cumplicidade dos generais com o regime corrupto, e agindo após um massacre que as tropas britânicas em Suez cometeram contra manifestantes nacionalistas. Esse ato ocorreu em 25 de janeiro – a nova revolta foi lançada nessa data em sua celebração.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Juventude, Democracia e Desenvolvimento



As revoltas democráticas iniciadas pela juventude nos países árabes iluminam tendências comuns demonstradas pela participação juvenil em outros protestos, como os que ocorrem na União Européia, em meio à crise econômica. Também notei semelhanças com o que observei quando pesquisei movimentos sociais juvenis na América do Sul. Os pontos principais: a juventude sente com mais intensidade as linhas de choque da economia global, como o desemprego, as deficiências do sistema de educação e a exposição às novas tecnologias da informação.

Na pesquisa que realizamos na América do Sul, as demandas mais frequentes dos jovens eram por trabalho e educação. Ou mais especificamente, por um emprego estável, de boa qualidade, diferente das ocupações precarárias em geral disponíveis para a juventude. No caso educacional, tratam-se de jovens com bem mais instrução do que seus pais, mas insatisfeitos com a qualidade baixa das escolas e universidades, e com a incapacidade dessa formação extra lhes render uma boa situação no mercado de trabalho.



São condições muito parecidas com as que existem no Egito e na Tunísia, onde o índice de desemprego juvenil está entre 25%-33%, mas não é um problema exclusivo do mundo em desenvolvimento. O gráfico acima mostra como a questão está presente nos países ricos, membros da OCDE. Em geral, o desemprego entre os jovens é o dobro, triplo ou mesmo quádruplo daquele registrado para os adultos. Notem que em países como a Espanha, a taxa é inclusive maior do que a das nações árabes.

A juventude européia é bem qualificada e educada, mas isso não tem sido suficiente para resolver o problema do emprego precário e de baixa remuneração. Na Itália se fala da "geração mil euros", que não consegue ultrapassar essa faixa de renda e continua vivendo com os pais mesmo depois dos 30 anos. Em Portugal o patamar é inferior, a "geração dos 500 euros" que tem seu hino na canção satírica do vídeo abaixo - que me foi gentilmente enviada por meu amigo Ramon Blanco de Freitas, que cursa o doutorado em Relações Internacionais na Universidade de Coimbra:



A instatisfação da juventude européia tem resultado em protestos, como as greves gerais na França e as ocupações universitárias no Reino Unido. Na América do Sul, os jovens têm sido atores importantes nos movimentos sociais que ganharam força na região. Ao contrário dos países árabes, nesses dois continentes há estruturas de participação política democrática (ainda que bastante falhas), que canalizam a raiva e a frustração. Naturalmente, é preocupante o crescimento da extrema-direita na Europa e a persistência de bolsões de autoritarismo na América do Sul, mas o quadro atual é muito melhor do que o passado sombrio dos dois continentes, como os regimes nazi-fascistas europeus das décadas de 1920-40 e as ditaduras militares sul-americanas dos anos 1960-80.

Outro ponto comum é o fascínio dos jovens com as novas tecnologias de informação. Observamos isso na pesquisa na América do Sul e me supreendi em como, por exemplo, os músicos do hip-hop indígena na Bolívia usavam a Internet para se articularem com artistas de tendência semelhante em diversos países. No Egito, os manifestantes da praça Tahrir ensinaram ao mundo inteiro como usar essas ferramentas para organizar protestos, denunciar abusos governamentais e cultivar a imagem internacional pacífica do movimento.



Há uma particularidade importante no mundo árabe, que é a deficiência das mídias tradicionais. O Egito possui meios de comunicação privados, que tentam conquistar espaço para criticar o regime ditatorial. Outros países possuem uma situação mais complexa. Nesse contexto, aumenta a importância de tecnologias de informação que permitam aos usuários gerar e compartilhar notícias, imagens e dados. Há também o caso muito especial da Al-Jazeera, a rede de TV sediada no Catar que tem realizado a melhor cobertura das revoltas democráticas árabes. Por reunir profissionais de várias nacionalidades e buscar uma perspectiva ampla, é possível que ela esteja contribuindo para o fortalecimento de uma identidade regional, pan-árabe.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Depois da Emergência



Se a democracia triunfar no Oriente Médio, haverá alguns demagogos, nacionalistas e fanáticos, assim como nos Estados Unidos e em Israel, e eles podem tornar a diplomacia mais complicada. Mas lembre-se de que foram a repressão, prisão e tortura de Mubarak que alimentaram extremistas raivosos como Ayman al-Zawahri da Al-Qaeda, o braço direito de Osama Bin Laden. Seria trágico se deixarmos nossas ansiedades impedirem nosso abraço da liberdade e da democracia na mais populosa nação árabe.

Nick Kiristof, colunista do New York Times

A transição para a democracia no Egito deu passos importantes no fim de semana, com a realização da manifestação do "Domingo dos Mártires" e a bem-sucedida negociação entre governo e oposição que culminou na abolição da Lei de Emergência, que autorizava boa parte dos poderes ditatoriais de Mubarak. A censura à imprensa também será suspensa, prisioneiros políticos serão libertados e comissões mistas elaborarão emendas constitucionais para regular a nova vida política do país. São conquistas extremamente significativas para as duas semanas de protesto e em comparação com outras experiências internacionais, embora os manifestantes continuem a exigir a renúncia do ditador e seu julgamento pelos crimes cometidos ao longo dos 30 anos de regime autoritário.

As negociações também iluminam pontos importantes das disputas políticas no Egito. O principal negociador pelo governo é o recém-empossado vice-presidente Omar Suleiman, que assim confirma sua posição como representante das Forças Armadas e da estabilidade, em meio aos medos de caos no país. Os jovens egípcios tiveram representação própria, junto aos partidos de oposição, o que comprova o destaque de suas demandas e capacidade de mobilização.

O grande ponto de interrogação é a participação da Irmandade Muçulmana na transição. Kristof argumenta que ela terá pouca influência e cita a experiência do Iêmen, onde os fundamentalistas foram derrotados após breve permanência na coalizão do governo. São bons pontos, mas acredito que ele subestima o conservadorismo religioso de boa parte da população egípcia, em especial na empobrecida zona rural. Em países como o Líbano, a ação do Hezbolá no governo tem sido bem mais perigosa e duradoura. A Economist também entrou bem na discussão, defendendo os partidos islâmicos moderados como a melhor maneira de conter o fundamentalismo.



A revista britânica publicou um ótimo quadro, reproduzido acima, que lista os países árabes de acordo com indicadores internacionais de democracia, corrupção e liberdade de imprensa. O quadro é dramático para as liberdades civis e políticas, onde as regiões melhor situadas - Líbano e Palestina - mal conseguem ficar entre as 100 mais democráticas. Curiosamente, alguns regimes autoritários árabes se saem melhor no tema do combate à corrupção, como os ricos Estados do Golfo (Catar, Emirados Árabes Unidos, Bahrein).

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Irmandade Muçulmana



Os manifestantes no Egito batizaram este dia como a “Sexta-feira da Partida”, na esperança de que o grande protesto que marcaram para hoje convençam Mubarak a renunciar à presidência. O ditador se apega ao cargo e lançou capangas armados (policiais à paisana e outros defensores do regime) contra ativistas democráticos, jornalistas e representantes de ONGs de direitos humanos. O Exército às vezes assistiu à violência sem intervir e em outros casos procurou separar os grupos em conflito, mas não reprimiu diretamente os manifestantes, o que mostra que os militares não estão dispostos a patrocinar um banho de sangue em defesa da ditadura, como ocorreu na China em 1989 e no Irã em 2009. Mesmo os aliados internacionais de Mubarak nos EUA e na União Européia clamam por sua renúncia e o argumento que restou ao ditador é afirmar que sem ele o Egito cairia no caos, sendo dominado pelos fundamentalistas da Irmandade Muçulmana. Hora de analisar o movimento.

A Irmandade foi fundada em 1928 e passou a maior parte de sua história na clandestinidade. Ela nasceu no contexto do colapso do colonialismo – do Império Otomano e das potências européias – no Oriente Médio, e da ascensão do nacionalismo árabe e dos anseios de modernização social e econômica na região. Sua receita era outra: o abandono dos projetos de reforma ocidentais e o retorno às raízes muçulmanas para assegurar uma sociedade ética e justa. Ela não foi fundada por pessoas ignorantes e isoladas do mundo, seu principal teórico, Sayyid Qutb (foto), havia se formado numa universidade dos Estados Unidos, e voltado horrorizado com o que viu por lá, inclusive a discriminação racial que sofreu.

Bandeiras religiosas estavam fora de moda no Egito da primeira metade do século XX, que seguia um modelo de modernização semelhante ao adotado pela Turquia: militares depondo a monarquia e iniciando um programa de reformas sociais autoritárias. Excluída do Estado e com seus militantes perseguidos e torturados, a Irmandade refugiou-se na Arábia Saudita, onde a Casa de Saud, em sua luta contra a dinastia hashemita, abraçou o wahabismo, uma versão hiper-puritana do Islã, como meio de conquistar legitimidade política para ser a guardiã dos locais sagrados em Meca e Medina.

No Egito, a Irmandade trabalhou sobretudo na área social, procurando “islamizar a sociedade”, já que não conseguia dominar o Estado. Fundou hospitais, clínicas, creches e posicionou como uma alternativa ética a uma oligarquia militar cada vez mais corrompida e desacreditada, pelas derrotas militares diante de Israel e pelo fracasso de seus grandes projetos de desenvolvimento em gerar empregos aos jovens da nova geração, que não viveram o auge da luta pela independência e autonomia egípcias, e conheceram apenas o declínio do regime dos militares.

Os choques do petróleo na década de 1970 deram à Arábia Saudita musculatura financeira para patrocinar o islamismo radical em escala global, e a Irmandade Muçulmana foi fundamental nesse processo, ajudando a recrutar as brigadas internacionais que combateram a URSS no Afeganistão, e auxiliando na criação do Hamas para lutar contra a ocupação isralense dos territórios palestinos. Cerca de metade dos terroristas envolvidos com os atentados de 11 de setembro eram egípcios, o que mostra a influência do país nessas redes políticas.

Nos últimos anos a Irmandade envolveu-se numa série de acordos de bastidores com Mubarak, nos quais o arranjo básico era uma espécie de pacto de não-agressão, pelo qual a Irmandade concordava em não tentar derrubar o governo em troca de permissão para expandir sua influência, embora continue oficialmente proibida. Segundo a maioria dos relatos, a organização enfrenta um período difícil, com muitos militantes desgostosos deixando-a, desiludidos com a conivência com o governo corrupto.

A Irmandade é forte demais para ser excluída de um futuro governo de transição no Egito, mas certamente irá procurar assegurar ministérios-chave para seu projeto político, como Educação ou Cultura, e tentará ganhar espaço com as inevitáveis frustrações que se seguirão em temas como o papel egípcio no conflito árabe-isralense.

PS - Fui entrevistado hoje à tarde no Jornal da Globo News e falei do longo caminho que vai do 11 de setembro às revoltas democráticas, como as do Egito. Clique no link para ver o vídeo.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Egito: Negociando a Transição



Acabou. Com o extraordinário protesto de 1 milhão de pessoas no Cairo e a decretação de uma greve geral, o regime de Hosni Mubarak chegou ao fim, a questão agora é saber quando o ditador deixa o poder. Se fica até setembro, até as eleições presidenciais que prometeu ontem, ou se renunciará antes disso, como demandam os manifestantes, que querem se livrar logo dele. As oposições se uniram contra Mubarak, mas são formadas por correntes bastante distintas.

A mais dinâmica e impressionante delas é o movimento 6 de abril, formado pelos jovens que usaram de modo tão criativo as tecnologias de informação para organizar os protestos. Eles convivem com os grupos liberais-democráticos mais antigos, que têm longa história de resistência à ditadura, e sofreram feroz repressão de Mubarak ao longo dos anos. O diplomata Mohamed El-Baradei tem afinidade com essa linha de pensamento, defendendo a elaboração de uma nova constituição para o Egito, que possa garantir a transição pacífica para a democracia. Mas El-Baradei é mais um porta-voz, importante por sua credibilidade no exterior. Ele viveu muitos anos longe do país e não têm base social expressiva em seu apoio.



A Irmandade Muçulmana é o outro segmento relevante da oposição, e com certeza o que desperta maiores receios. Na clandestinidade há muitos anos, em tempos recentes costurou acordos com Mubarak, comprometendo-se a não atacar o governo em troca de certa liberdade para atuar por meio de organizações de fachada. A Irmandade é bem organizada e influente, estima-se que controle cerca de 20% dos deputados egípcios, e muitos dos sindicatos. O grande risco é que, num cenário de vácuo de poder, a disciplina e preparo de seus quadros lhe garantisse a liderança do Egito, à semelhança do que houve com os aiatolás no Irã, após a derrubada do xá.

As Forças Armadas seguem como a instituição mais poderosa do Egito e sua decisão de não reprimir os protestos é, nitidamente, um sinal que abandonaram Mubarak à sua própria sorte, e que estão prontas a negociar com as oposições e exercer papel de destaque no futuro governo. Talvez por meio do novo vice-presidente, o general Osmar Suleiman, ou quem sabe por oficiais mais jovens, como os coronéis que encerraram a monarquia, em 1952. Para os Estados Unidos, União Européia e Israel, é boa notícia. Os militares são os principais fiadores da estabilidade egípcia e de sua permanência nas alianças ocidentais no Oriente Médio.

Os Estados Unidos atravessam a crise egípcia com dificuldades diplomáticas. Os manifestantes criticam Barack Obama e mostram-se decepcionados com seu longo apoio a Mubarak, mesmo que o presidente americano tenha enviado um representante ao seu colega egípcio, aconselhando-o a anunciar sua iminente saída do cargo. Os dilemas que os EUA enfrentaram no Egito podem se repetir à medida que outros aliados no mundo árabe enfrentam revoltas, como na Jordânia, onde o rei exonerou todo o ministério e nomeou um popular ex-militar para comandar um novo gabinete.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Dilma na Argentina: direitos humanos como agenda positiva



A presidente Dilma Roussef realizou sua primeira viagem como chefe de Estado. A escolha da Argentina foi importante, para sinalizar a importância da sempre complexa agenda bilateral, mas também para frisar o que promete ser marca da diplomacia de Dilma: mudanças com respeito aos direitos humanos.

A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China e dos Estados Unidos. A balança do comércio exterior havia sido tradicionalmente favorável aos argentinos, mas o quadro mudou após a crise de 1998-2002 e tem provocado tensões. De la Rúa e os Kirchner adotaram barreiras para tentar conter o desequilíbrio: elevaram tarifas acima do permitido pelo Mercosul, impuseram proibições administrativas às importações brasileiras (esquema que dá margem para muita corrupção) e extraíram um mecanismo bilateral de negociação de salvaguardas que desagradou ao Paraguai e Uruguai, demais sócios plenos do bloco regional. Empresas brasileiras que operam na Argentina também sofreram com medidas como os controles de preços e quebras de contrato por parte do governo.

Apesar do déficit argentino, a relação econômica com o Brasil lhes é muito importante, pelo enorme fluxo de investimentos e de turistas, além da importância crucial do mercado consumidor brasileiro para a indústria do país vizinho. Mais da metade da produção de automóveis, por exemplo, é exportada para o Brasil. Ambas as nações são parceiras significativas na produção de energia, com pesquisa conjunta na área nuclear e planos de construir usinas hidrelétricas no rio Uruguai.

Para além da conjuntura, os problemas comerciais refletem uma dificuldade estrutural: a necessidade da Argentina administrar seu declínio relativo diante de um Brasil em ascensão, do qual depende economicamente. Cabe lembrar que até a década de 1950, o país vizinho tinha um PIB maior do que o gigante brasileiro, e mesmo hoje em dia a qualidade de vida e os indicadores sociais são melhores por lá. É difícil, muito difícil, chegar a acordos sobre esses assuntos, em especial com a persistência de uma estúpida ideologia da rivalidade - a imagem abaixo mostra uma inacreditável campanha da prefeitura de São Paulo, que retrata o mosquito da dengue com a camisa da seleção argentina de futebol! Por isso aumenta a importância de uma "agenda positiva" nas relações bilaterais, e o tema dos direitos humanos pode preencher esse vácuo.



A ditadura militar argentina de 1976-1983 foi a pior da América do Sul, deixando como saldo entre 9 mil e 30 mil mortos, a guerra das Malvinas e tragédias humanitárias como o sequestro de bebês filhos de desaparecidos políticos (estima-se que cerca de 400 crianças foram roubadas, pouco mais de 100 foram descobertas) e os vôos da morte, no qual prisioneiros dopados eram atirados no rio da Prata. Diante de tanta brutalidade, não espanta que os argentinos liderem os esforços regionais em assuntos como a memória do período autoritário e a punição aos torturadores e assassinos.

A presidente Dilma é a primeira chefe de Estado brasileira a ter sido torturada e torço para que essa experiência terrível se reflita em um compromisso para erradicar esse crime ainda tão comum no Brasil. No campo externo, Dilma anunciou mudanças, com indicações que no Conselho de Direitos Humanos da ONU o país terá comportamento mais crítico aos regimes repressivos, citando o Irã como exemplo.

O Brasil é um ator de influência crescente no Oriente Médio, mas ainda é um participante secundário das crises da região. Na América Latina, ao contrário, o país pode e deve ter papel de destaque na consolidação da democracia e dos direitos humanos. Isso significa atitudes diversas com respeito a Cuba e à Venezuela, nos quais a defesa incondicional dos respetivos governos poderia ser substituída por mediações como a que a Espanha realizou junto a Havana, resultando na libertação de dezenas de presos políticos.

A reunião da presidente Dilma com as Mães e Avós da Praça de Maio sinaliza outra agenda importante: o reforço da memória regional sobre as ditaduras, como passo para eliminar problemas pendentes como o ocultamento dos restos mortais dos desaparecidos brasileiros, pelo o qual o governo brasileiro já sofreu inclusive condenações internacionais, na Organização dos Estados Americanos.

PS - Hoje ocorre no Egito a "Marcha do Milhão", contra Mubarak e pela democracia. Amanhã comento-a no blog.