quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Villa Soldati, Cidade e Democracia



A imprensa brasileira pouco comentou, mas ao longo da última semana ocorre um dos mais graves conflitos sociais da Argentina pós-crise. Em Buenos Aires, no bairro de Villa Soldati, moradores atacaram imigrantes bolivianos e paraguaios que haviam ocupado um conjunto habitacional em construção. Três pessoas morreram e muitas outras ficaram feridas. Villa Soldati é uma zona de classe média baixa, netos e filhos de italianos pobres, agredindo a nova pobreza recém-chegada à Argentina. Versão portenha do ótimo filme de Scorsese sobre as gangues da Nova York do século XIX.

Os brasileiros estamos acostumados a níveis cotidianos de violência que chocariam os visigodos, e talvez por isso não tenhamos percebido a importância do que aconteceu em Buenos Aires (ademais, reflexos de problemas de segurança mais amplos). Trata-se de um embate que será crucial nos próximos anos: a luta pela democracia em cidades que são, cada vez mais, nós de conexão das grandes redes globais. Que incluem levas de imigrantes, em muitos casos com outras cores de pele ou religiões diferentes, e com menos direitos do que os moradores nativos. Os riscos de xenofobia e o aumento do racismo não estão restritos às metrópoles da América do Norte e da Europa, conflitos sociais desse tipo eclodiram também na África do Sul, no México e, agora, na Argentina. Podem estourar em São Paulo ou Santiago do Chile.

Esses temas ganham cada vez mais força também na minha agenda acadêmica. Na sexta-feira fiz parte de uma banca de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A ótima tese discutia a gestão democrática da cidade, a partir de uma crítica do Estatuto da Cidade, por meio de autores marxistas. O argumento era que os regimes democráticos não conseguem assegurar uma boa cidade, porque deixam intacta a estrutura econômica injusta.

Na minha arguição, ponderei que a tese era dura demais com a democracia e que os temas urbanos tinham sido uma questão central para os movimentos sociais desde meados do século XIX, com a luta por habitação, saneamento e boas condições de vida nas cidades. Destaquei o caso da "Viena Vermelha" do entreguerras, onde os sociais-democratas construíram o mais importante embrião do Estado de Bem-Estar Social. Ou de como campanhas que à primeira vista não estão ligadas à cidade, como a dos direitos civis nos EUA, manifestam-se no ambiente urbano, nos conflitos pelo fim da segregação racial no transporte coletivo, por exemplo.

No mundo contemporâneo, a demanda democrática mais radical a ser feita é a da cidadania global, afirmaram Toni Negri e Michael Hardt. Essa é a utopia, o sonho além do horizonte.

9 comentários:

Marcos disse...

Estava em BsAs quando isso aconteceu, foi uma semana de jogo de empurra-empurra entre o governo federal e o da cidade autônoma (Macri).

Metade da manhã no canal de notícias TN era sempre dedicada ao tema.

Até me surpreendia quando visitava portais brasileiros e não via nada sobre isso.

E aconteceu mais coisa, por exemplo, fizeram um bloqueio de autopista para protestar e um carro passou atirando no povo e acertou uma grávida. Outro, uma das vítimas da Villa Soldati foi 'sequestrada' da ambulância, primeiro todos acharam que havia morrido, mas depois apareceu todo quebrado...

Contudo, apesar de toda a atenção da mídia argentina (o citado TN, várias rádios com boletins ao vivo, etc), não percebi muita repercussão na sociedade, ou pelo menos não quiseram comentar com um turista.

Maurício Santoro disse...

Salve, Marcos.

Pois é, além do conflito social, há um aspecto muito negativo envolvendo a ação governamental na questão urbana na Argentina.

Ainda navego pelas interpretações confusas, mas pelo que entendo, há uma relação próxima do governo federal com a liderança das ocupações, por meio dos "punteros", os coordenadores das redes clientelistas do peronismo.

Abraços

Marcos disse...

Sabe o que eu devia ter feito?

Fotografado os graffitis - os 'fuerza Cristina', 'viva peronismo', 'fuera Macri', 'fuera Kirchner', etc - para uma análise de calagrifia, hehe.

Anônimo disse...

Professor inha pergunta não tem nada a ver com o post,pois gostaria de saber se o chile faz parte do mercosul ou tem um tratado de livre cormercio com o mesmo. sds JOÃO ALBUQERQUE

Maurício Santoro disse...

Salve, Marcos.

Se bem conheço a Argentina, muitas pessoas tiraram essas fotos e as colocaram online. Como diz meu irmão, é para o "museu da revolução".

Salve, João.

Sem problemas. O Chile é membro-associado do Mercosul, desde o fim dos anos 90. Isso significa, na prática, um acordo de livre comércio e o direito de participar de alguns fóruns do bloco.

A principal diferença entre membros associados e membros plenos é que esta segunda categoria adere à Tarifa Externa Comum, que é elevada para os padrões internacionais. A chilena é, em média, cerca da metade da do Mercosul.

Abraços

Wellington Amarante disse...

Olá, Maurício!

Como tocaram no assunto Mercosul, gostaria de dizer que no canal do Itamaraty no YouTube (MREBRASIL) foram postados dois vídeos com os programas, levados ao ar pela TV Brasil, sobre os 20 anos do Mercosul. Fica a dica.

Abraços e boas festas!

Maurício Santoro disse...

Valeu, obrigado!

Wellington Amarante disse...

Maurício! Olha eu outra vez! Que tal um post sobre a Costa do Marfim? Abraços.

Maurício Santoro disse...

Salve, Wellington:

Dê uma olhada nesse blog, que está fazendo um bom acompanhamento:

http://chrisblattman.com/2010/12/27/cote-divoire-speculations-open-thread/

abraço