sexta-feira, 14 de maio de 2010

Jantar com Mugabe



Nos anos 70, Heidi Holland era uma jornalista progressista na Rodésia, que simpatizava com as guerrilhas que combatiam o governo da minoria branca, que estabelecera um regime semelhante ao apartheid. Numa noite, um advogado amigo lhe pediu para receber em sua casa um dos líderes da luta armada, Robert Mugabe. Ela jantou com os dois, o levou até a estação de trem, e o achou inteligente e simpático. No dia seguinte Mugabe telefonou para agradecer e perguntar pelo filho bebê de Holland, que havia ficado sozinho enquanto ela levava o convidado para tomar o trem. Pouco depois, Mugabe partiu para o exílio em Moçambique. Tornou-se presidente cerca de cinco anos mais tarde e há trinta anos oprime o Zimbábue (como o país passou a se chamar a partir de 1980) numa das piores ditaduras da África. O que aconteceu com aquele homem gentil?

Para responder à pergunta, Holland escreveu um livro-reportagem fascinante, que lembra a estrutura do filme “Cidadão Kane”. Ela entrevista diversas pessoas que conviveram proximamente a Mugabe: seu irmão, sua sobrinha, um policial que foi seu carcereiro, um ex-ministro, uma aristocrata britânica que foi sua confidente no início do governo, um ex-chanceler do Reino Unido, um padre jesuíta que até hoje o apóia. Cada um revela algo sobre o ditador, e ao fim, a jornalista consegue reencontrá-lo, para uma conversa surpreendemente intimista.

Parte considerável da tragédia de Mugabe vem de que ele poderia ter sido uma pessoa muito diferente. Ele nasceu numa família pobre, mas se destacou na escola missionária, freqüentando os melhores estabelecimentos de ensino da Rodésia. Dois dramas familiares o marcaram: a morte do irmão mais velho e o abandono do pai. Mugabe tornou-se o cerne de todas as expectativas de sua mãe, que instilou nele a idéia de que nascera para um propósito divino. O menino se tornou solitário e desconfiado, ainda que muito inteligente. Ao longo da vida, Mugabe obteve nada menos do que seis diplomas universitários.



Ele foi para Gana – o primeiro país da África negra a conquistar a independência – onde trabalhou como professor e conheceu Sally, a ativista política que viria a se tornar sua primeira esposa. Embora ela se tornasse uma primeira-dama corrupta, é consenso que despertou o lado suave e emocional de Mugabe, sendo boa influência para seus aspectos mais sombrios. O jovem intelectual logo se transformou numa figura importante no movimento nacionalista da Rodésia, respeitado por seus dotes acadêmicos e facilidade de expressão. Ele retornou ao país para se dedicar à política, e talvez esse tenha sido o erro. Ficou preso 11 anos, em condições difíceis, e sequer pode ir ao enterro do único filho que teve com Sally, que morreu aos três anos. As disputas na guerrilha eram ferozes, envolvendo traições, violência e assassinato.

Holland descreve em detalhes as tensões de bastidores da conferência de Lancaster House, as negociações quadripartites entre os dois grupos guerrilheiros, o governo branco da Rodésia e os britânicos, que promoveram a transição pacífica para a vida independente do Zimbábue. O acordo estabeleceu várias cláusulas para proteger a minoria branca, por alguns anos. Mugabe cumpriu o prometido. Mas avançou na jugular de seus inimigos negros: matou milhares de oponentes na região de Matabeleland. O mundo se calou: o Zimbábue era uma história de sucesso vista como prelúdio para desmantelar o apartheid na África do Sul. Melhor fingir que tudo ia bem.

Ela toca de passagem nas disputas entre Mugabe e a oposição democrática (o partido MDC) e a hiperinflação. Como quase sempre acontece nos livros sobre o Zimbábue, o destaque maior é para o saque do governo às fazendas dos brancos, na década de 2000. Destruiu a agricultura comercial do país e, por tabela, a estabilidade da moeda. Mas é sempre um tanto perturbador observar como os sofrimentos da maioria da população – no caso do Zimbábue, negros na zona rual – aparece pouco. Ao menos Holland tem o mérito de apontar as feridas de seu próprio grupo, os descendentes dos britânicos, criticando seu racismo, arrogância e miopia política. Há inclusive uma ótima entrevista com Ian Smith, o legendário líder do governo minoritário, que rompeu com o Reino Unido e recusou diversas propostas para negociar com os nacionalistas negros.

Nenhum comentário: