quarta-feira, 10 de março de 2010

As Duas Espanhas e o Brasil



Há alguns anos insisto com meus alunos que as relações entre Espanha e América Latina são campo fértil para pesquisa. Em boa hora, o diplomata Tarcísio Costa lança seu “As Duas Espanhas e o Brasil”, fruto da tese que apresentou ao Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco. O livro é um excelente estudo sobre as transformações espanholas dos últimos 30 anos.

As “duas Espanhas” que Costa menciona no título são as heranças culturais contraditórias com as quais o país se defrontou ao longo do século XX. De um lado, as tradições católicas, unitárias e imperiais. De outro, a influência das idéias progressistas européias: liberalismo, democracia, socialismo. Desde que a Espanha perdeu os restos de seu império na guerra de 1898 com os Estados Unidos, tais dilemas dividiram seus líderes políticos e intelectuais, perpassando os anos turbulentos da República, da guerra civil e do franquismo.

Costa faz uma ótima síntese dos esforços de Franco em manter boas relações com o Ocidente – por exemplo, por meio de acordos comerciais com a Comunidade Econômica Européia – ao mesmo tempo em que se esforçava para preservar o autoritarismo do regime. Tudo isso ruiu com a transição para a democracia do Pacto de Moncloa, e os diversos grupos políticos espanhóis viam a integração à Europa como solução, como modo de garantir as liberdades cívicas, a economia de mercado e conter os extremistas.

As relações com a América Latina também ganharam destaque, em especial quando as empresas espanholas se tornaram investidoras de peso na região – no Brasil, só estão atrás em estoque de capital para as firmas dos Estados Unidos. Madri tem buscado trabalhar esses vínculos por meio da Comunidade Íbero-Americana, que ainda é um projeto em formulação, um tanto indefinido em termos de instituições. Mas há uma intensa cooperação cultural, na qual a Espanha utiliza com habilidades instrumentos como o Instituto Cervantes e a Fundação Carolina para aumentar sua influência.




Houve um consenso abrangente entre socialistas e conservadores quanto a esses objetivos nas décadas de 1980 e 1990, mas o contexto dos anos 2000 foi marcado pela “crispación”, pela crescente polarização entre os principais partidos políticos (PSOE e PP) sobre como lidar com temas polêmicos como o apoio à guerra dos EUA no Iraque, as relações com Cuba, Bolívia e Venezuela e com a Argentina pós-crise. Sob o governo conservador de Aznar, houve muitos incidentes controversos, agravados pelo hábito desse primeiro-ministro em dizer aos latino-americanos como se comportar. Seu pior momento foi o apoio à tentativa de golpe na Venezuela, em 2002.

Costa vê com otimismo as possibilidades das relações da Espanha com o Brasil, mas neste ponto minha interpretação é mais sombria do que a do diplomata. Vejo pelo menos três pontos de conflito entre os dois países. Primeiro, o crescimento do racismo e da xenofobia espanhóis, que tem vitimado muitos brasileiros (inclusive minha estagiária favorita!). Segundo, a situação preocupante da economia da Espanha, que marcha para uma séria crise há muito anunciada, com estouro da dívida pública, de uma bolha imobiliária e das dificuldades de ajuste com o euro.

Terceiro, a própria disputa por influência na América Latina. Quando servi no Conselho Nacional de Juventude, fui testemunha da enorme desconfiança do Itamaraty (ao menos, sob o governo Lula) com relação aos desígnios da Comunidade Ibero-Americana. O que para nós eram oportunidades interessantes de cooperação na área social, para a chancelaria soava como interferência européia numa região importante para o Brasil.

8 comentários:

Mariana Cabral disse...

Oi, Mauricio!!!

Adorei a dica do livro. Acabei de voltar da Espanha, e confesso que estava com medo da xenofobia antes de viajar.

Tirando a habitual má vontade com os latino-americanos, não senti nada de diferente no tratamento que recebi por lá, a não ser por uma estranha abordagem na entrada do Prado.

Um recepcionista me viu conversando e perguntou se eu era do Brasil.

Com um ar de deboche, o homem disse: "é, agora tem muito brasileiro por aqui, vocês estão com dinheiro sobrando". Eu dei um sorriso amarelo e ele continuou: "Vamos ver até quando dura".

Eu resolvi subir as escadas pra não bater boca no museu.

Nadie merece.

P.R. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
P.R. disse...

Meu chefe preferido! De fato, relações entre Espanha e América Latina são campo fértil para pesquisa. Daí a relevância deste trabalho de Tarcísio Costa, que descortina um pouco esse país para a gente. Não li o livro, mas quero muito fazê-lo em breve. Parece-me muito interessante essa visão da Espanha como duas partes distintas e muitas fezes conflitantes. E naturalmente, chama-me a atenção a análise que o autor faz sobre as relações com o nosso continente.

Claro que preciso ler o livro antes de fazer um comentário mais consistente, porém fico com a impressão que ele foca mais em relações comerciais e em cooperação cultural – aspectos bastante institucionalizados e “oficiais” da ligação entre aquele país e a América Latina. Creio que buscar analisar os processos e fenômenos econômicos e culturais que deixamos junto com a poeira embaixo do tapete é tão relevante quanto estudar as relações oficiais, e uma tarefa não tão explorada pelos internacionalistas. Acho que tenho conhecimento de causa para afirmar isso, pois venho das relações internacionais e por anos percebi que essa disciplina deixa muito a desejar na análise desses fenômenos e relações, geralmente estudados por sociólogos e antropólogos... Ficaria feliz se o livro tivesse também se debruçado sobre questões relevantes como políticas de migração e expressões de nacionalismo arraigado na Espanha.

Definitivamente, estou com Maurício e vejo com preocupação esse movimento de fechamento de fronteiras na União Européia, o enrijecimento das políticas de migração (o que é aquela diretiva de retorno aprovada pelo Parlamento Europeu em 2008??? Absurdo puro!) e as manifestações nacionalistas que beiram a xenofobia tanto pela população quanto pelas autoridades – o que explica boa parte das arbitrariedades cometidas pela política de imigração espanhola.

Enfim, como internacionalista, cientista política e vítima dessa arbitrariedade, creio que essas questões são importantes demais para passarem em branco em qualquer estudo ou livro sobre Espanha. Fica aqui meu protesto e meu compromisso de ler o livro para contribuir de forma mais embasada a este debate!

Tenho feito clippings de notícias sobre questões de migração e postado em um novo blog, http://barradospelomundo.blogspot.com/

Até o segundo semestre, vou postar também a versão digital do meu livro sobre esse tema, “Barrados”. Mando notícias sobre isso.

Beijo saudoso da estagiária preferida

Maurício Santoro disse...

Oi, Mariana.

Impressiona sua experiência recente, e infelizmente confirma minhas piores expectativas com relação à Espanha. Se te dizem algo assim, na porta de um centro de cultura, um dos melhores museus do mundo, imagine no resto do país....

Querida Pat,

Sua impressão está correta, o foco do livro é a questão econômica, de comércio e investimentos, temperada por um pouco de cooperação cultural.

O MRE tem dificuldades grandes de dialogar com a sociedade, em particular com os brasileiros no exterior.

Estou acrescentando seu novo blog à barra dos favoritos, e aguardo pelo livro!

beijo

Mariana Cabral disse...

É mesmo, Mauricio... O deboche fica ainda mais grave vindo de um lugar que se diz multicultural.

beijo!

Mário Machado disse...

Nunca fui barrado, mas devo ter uma cara de traficante danada pq não tem aeroporto no mundo em que eu não tenha ido para salas de revista e questionamento.

Mas, mesmo assim (vá entender a natureza humana) se o Brasil fosse o alvo de um grande fluxo migratório acho que eu não gostaria muito.

Ok. Não é bonito dizer isso ao mesmo tempo acho um absurdo a maneiro pela qual os bolivianos e chineses são escravizados aqui. Meu sangue negro (e quem não tem o Brasil) ferve muito com isso.

Onde estaria o equilíbrio?

Mário Machado disse...

Política externa brasileira ainda é encastelada no MRE e na academia. Ainda não é algo na agenda da política nacional. Chagaremos lá. Assim espero...

Maurício Santoro disse...

Salve, Mário.

Concordo, deve haver a busca de um equilíbrio. Mas infelizmente o que tem acontecido é que brasileiros que só querem fazer turismo ou viajar a negócios são tratados como criminosos em potencial.

O Itamaraty tem feito alguma pressão sobre o Ministério da Justiça para que o Brasil assine alguns tratados de proteção dos direitos dos migrantes, aos quais o MJ tem se oposto justamente em função da situação dos imigrantes por aqui.

abraços