quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Celso Furtado e a Venezuela


Antes de outra impressão, na presença e nos modos: um grande senhor. Serena altivez, unidade de pensamento, visão global dos temas e espetacular poder dedutivo. Poliglota. (...) Apaixona-se automaticamnte pelos grandes problemas que supõem um desafio intelectual ou social e se comove diante do mais simples gesto humano que traga uma legítima carga poética.
O jornalista venezuelano Lorenzo Batallán, descrevendo o economista brasileiro Celso Furtado

Dinheiro na mão é vendaval
Paulinho da Viola

Meses atrás Rosa Furtado, víuva de mestre Celso, esteve na ONG em que trabalho para a exibição do documentário sobre seu marido. Contou que finalmente o arquivo do economista foi organizado, reunindo cartas, esboços e mapas do que foi um dos mais ricos itinerários intelectuais da América Latina. Ficamos entusiasmados com o potencial do tesouro. A primeira pérola a vir a público é o livro “Ensaios sobre a Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisas”, que reúne dois textos a respeito da dificuldade de conciliar o boom petrolífero com a modernização do país. Vale para os venezuelanos, de ontem e hoje, mas também para o Brasil nestes tempos de pré-sal.

Os ensaios foram escritos em 1957 e 1974. Na primeira data, a Venezuela estava no fim da ditadura do general Pérez Jimenez. Furtado visitou o país como funcionário da Comissão Econômica da ONU para a América Latina e Caribe. Sua missão era realizar o diagnóstico da realidade local e preparar o estudo que serviria de base para o treinamento de técnicos governamentais. No entanto, as conclusões do economista desagradaram o ditador, que no melhor estilo caudilhista declarou o relatório “inexistente” e proibiu sua difusão. Esta é a primeira vez que ele é publicado oficialmente, embora tenha circulado de maneira informal.

Na época do segundo ensaio Furtado já havia deixado a ONU, e estava exilado na França, como professor da Sorbonne. Voltou à Venezuela a convite da equipe do presidente Carlos Andrés Pérez, que buscava conselhos sobre como administrar o manacial de dólares que seguiu para o país após o choque do petróleo de 1973.

As reflexões de Furtado são parecidas nos dois textos. Chama a atenção para a benção duvidosa do petróleo. Os lucros obtidos por sua exportação inundam a economia com tantos dólares que tornam a moeda local excessivamente valorizada, prejudicando o desempenho dos outros setores econômicos (indústria, agricultura) que só sobrevivem à custa de subsídios e proteção pesada e ineficiente. Sim, é a doença holandesa. Mas ele diagnosticou o problema antes do termo ser criado. Sua inspiração, além do trabalho de campo, foram estudos sobre o impacto da prata da América no velho império colonial espanhol.



A ditadura venezuelana usou o petróleo para promover grandes (e corruptas) obras de infra-estrutura, a democracia tentou desenvolver complexos de siderurgia e petroquímica. Furtado examina os prós e contras dessas escolhas, mas o que recomenda é a ênfase no capital humano, na criação de um sólido sistema escolar, e no incentivo à modernização da agricultura familiar, para absorver mão-de-obra e baratear os alimentos. Ele critica o modo como as ações governamentais concentraram renda em pequenos grupos empresariais.

Nenhum governo venezuelano lidou a contento com o presente do petróleo. Chávez tampouco. Verdade que investiu em saúde e educação, mas falhou em combater pobreza e desigualdades, e em diversificar a base produtiva do país. O máximo que conseguiu foi ampliar as origens das importações, o que favoreceu Brasil e China. Segue preso à armadilha dos projetos gigantescos de infra-estrutura e do favorecimento aos empresários próximos ao poder, agora conhecida como “Boliburguesia”. Curiosamente, inclui benefícios a empresas brasileiras desprezadas por outros governantes bolivarianos...

Furtado estava pessimista com relação à Venezuela da ditadura militar, mas otimista com as possibilidades que se abriram para a democracia. Havia dito que a nação poderia aproveitar a chance de crescer, “ou pode ser um país subdesenvolvido mas muito rico, com tremendas desigualdades sociais, com grandes desequilíbrios e com uma sociedade muito menos viável.”

4 comentários:

Anônimo disse...

Furtado é um mestre para todo economista com um mínimo de senso crítico. Um texto tão incisivo que a leitura se torna até difícil, mas revelador para quem se acostumou com os malditos manuais de microeconomia.

Maurício Santoro disse...

Também é um mestre para nós, cientistas políticos, pela habilidade com que mescla história, política, economia e cultura.

Abraços

Anônimo disse...

Grande Celso Furtado, um dos poucos economistas que realmente merecia ser tratado como tal neste país.

Curioso que morreu em um momento onde o pensamento desenvolvimentista estava em baixa. Vou mais adiante, fora dos círculos decentes do pensamento acadêmico, a morte dele teve pouca repercussão.

Também é digno de nota que se vivo estivesse seria de grande valia neste momento da economia mundial, onde os pseudo-economistas da vez fazem mea culpa e nomes como Beluzzo voltam a ser escutados.

Maurício Santoro disse...

De fato, Hugo.

No livro há uma entrevista na qual Furtado comenta o colapso do sistema de Bretton Woods (1971) e o primeiro choque do petróleo (1973) e é incrível como várias de suas observações soam muito atuais.

Abraços