sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O Fardo do Homem Moreno


O conflito envolvendo a empreiteira brasileira Odebrecht e o governo do Equador é bastante ilustrativo do novo cenário com que se depara a política externa brasileira na América do Sul, num momento em que as empresas do país se expandem pela região

Os grandes produtores de hidrocarbonetos na América do Sul (Bolívia, Venezuela e, em menor escala, Equador) obtiveram recursos econômicos que lhes estimularam a ter políticas externas autonomistas, que com certa freqüência levam a conflitos com empresas estrangeiras. No caso específico do Equador, o governo Correa entrou em confronto com diversas empresas nos últimos meses: expulsou a petroleira americana Occidental e forçou firmas de telecomunicação do México e da Espanha a refazer contratos.

As disputas com a Odebrecht se deram porque a empreiteira brasileira atrasou a construção de uma hidreelétrica e entregou a obra com defeito nas turbinas, o que ocasionou parada forçada da produção de energia, causando prejuízos ao Equador. Um acordo vinha sendo negociado entre as autoridades e a empresa, mas Correa optou por golpe de força porque no domingo haverá o referendo da nova Constituição (as pesquisas dão vitória ao presidente por 60%, e sua popularidade está em torno de 70%).



Sua ordem de mandar os militares ocuparem os quatro canteiros de obras da Odebrecht é uma tentativa de apaziguar as Forças Armadas, que estão descontentes com o governo em função do apoio dado às FARCs e a Chávez. Os ministros da Defesa equatorianos duram poucos meses no cargo e os militares têm longa tradição de golpes e intervenção na política. A última foi em 2000, quando o coronel Lucio Gutierres participou numa rebelião em parceria com movimentos sociais, que depôs o presidente Jamil Mahuad. Depois Gutierres foi eleito para o cargo e governou até 2005, quando seus aliados na esquerda o levaram a renunciar, insatisfeitos com sua política econômica conservadora.

A declaração de Correa de que poderia não pagar o empréstimo que o BNDES concedeu a seu governo para a contratação da Odebrecht é apenas retórica, porque tais operações financeiras são feitas pelo mecanismo do CCR, que inclui seguro contra o "risco soberano". Em bom português: garantia contra calotes governamentais.

Naturalmente, nada disso é bom para o Brasil, mas trata-se de instabilidade com a qual o país pode conviver, como aliás o fazem EUA, Espanha e outros países com interesses no Equador. Acredito que na segunda, após a votação sobre a Constituição, Correa estará disposto ao diálogo.

Ademais, ao contrário dos EUA, China, Rússia e Índia, a política externa brasileira para sua vizinhança regional não tem tradição de intervenções militares e sanções econômicas, fora as aventuras bélicas do Império no Prata, entre 1820-1870. Sua ênfase em toda a época republicana foi na resolução pacífica de conflitos e no papel moderador e estabilizador, mediando crises e até guerras entre os demais países sul-americanos. Parafraseando Kipling, digamos que este é o fardo do homem moreno...

Cumprir este Destino Manifesto era mais fácil no passado, pois a própria fragilidade dos laços econômicos entre o Brasil e seus vizinhos significava também a ausência de tensões e conflitos. O cenário atual é diferente: a economia brasileira cresceu e hoje corresponde à cerca de metade do PIB da América do Sul, e as empresas do país são atores decisivos na região, em áreas distintas como o agronegócio no Paraguai e Uruguai, a exploração de gás e petróleo na Bolívia e Equador e a construção civil na Argentina, Peru e Venezuela.

Acredito que, com o tempo, a diplomacia do Brasil encontrará novos instrumentos para gerir essas tensões, talvez algum tipo de acordo de proteção de investimentos, ou um tribunal de resolução de controvérsias entre empresas e governos, como o que existe no Banco Mundial.

2 comentários:

Rodrigo Cerqueira disse...

É isso mesmo Maurício. Episódios como esse são uma espécie de efeito colateral da nossa inserção mais ativa e com aspirações de liderança na América do Sul, aliada à instabilidade política em muitos de nossos vizinhos. Ao contrário do que muitos comentaristas em jornais e TVs gostam de alardear, não há motivo para confrontar esses países a ponto de comprometer as relações. Durante décadas, os discursos nacionalistas no Brasil execraram a Shell, o FMI e as montadoras, entre muitas outras. Agora, os imperialistas somos nós. Vai passar.

Maurício Santoro disse...

Pois é, na Argentina os amigos me diziam: "Vocês, brasileiros, são os yankees da América Latina". E não era elogio...

Mas é uma realidade nova à qual o Brasil terá que se adaptar, afinal o país agora controla às vezes mais de 90% do comércio exterior dos vizinhos, como no caso do Paraguai.

Abraços