terça-feira, 30 de setembro de 2008

Apocalipse 6



1 E, havendo o Financial Times e a The Economist aberto um dos selos, olhei, e ouvi um dos quatro animais, que dizia como em voz de trovão: Vem, e vê.

2 E olhei, e eis um banco de investimentos; e o que estava assentado sobre ele tinha um empréstimo hipotecário subprime e foi-lhe dado um subsídio governamental, e saiu vitorioso, e para vencer.

3 E, havendo aberto o segundo selo, ouvi o segundo animal, dizendo: Vem, e vê.

4 E saiu uma seguradora; e ao que estava assentado sobre ela foi dado que tirasse a paz da terra, e que falisse uns aos outros; e foi-lhe dado uma grande nacionalização.


5 E, havendo aberto o terceiro selo, ouvi dizer ao terceiro animal: Vem, e vê. E olhei, e eis um pacote de ajuda a Wall Street e o que sobre ele estava assentado tinha a Secretaria do Tesouro e o Fed na mão.

6 E ouvi uma voz no meio dos quatro animais, que dizia: Uma medida de votos por um dinheiro, e três medidas de deputados por um dinheiro; e não danifiques o petróleo e o dólar.



7 E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem, e vê.

8 E olhei, e eis um Congresso rebelde, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Pânico; e o mercado o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra, com quedas na bolsa, e com fome, e com o déficit fiscal, e com a fuga do capital.

9 E, havendo aberto o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por amor da palavra das hipotecas e por amor dos empréstimos que fizeram

10 E clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?

11 E foram dadas a cada um compridas cédulas eleitorais e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo, até a votação de novembro, e que também se completasse o número de seus conservos e seus irmãos, que haviam de ser mortos como eles foram.

12 E, havendo aberto o sexto selo, olhei, e eis que houve um grande tremor de terra; e o sol tornou-se negro como um candidato democrata, e a lua tornou-se como sangue;

13 E as estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, e o índice Dow Jones despenca às profundezas, abalado por um vento forte, pelas guerras na Babilônia e na Báctria, e pelos temores na Pérsia.

14 E o presidente Bush retirou-se como um livro que se enrola; e todos os republicanos, liberais e neoconservadores foram removidos dos seus lugares.

15 E os reis da terra, e os grandes, e os ricos, e os tribunos, e os poderosos, e todo o servo, e todo o livre, se esconderam com seus iPhones e notebooks;

16 E diziam aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós, e escondei-nos do rosto daquele que está assentado sobre o trono, e da ira dos eleitores;

17 Porque é vindo o grande dia da sua ira; e quem poderá subsistir?

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A Nova Constituição do Equador



Com vitória estimada em 65% dos votos, o presidente Rafael Correa aprovou a nova Constituição do Equador – um texto surpreendente que é provavelmente o mais avançado da América Latina e reconhece a união civil entre homossexuais, estabelece direitos para imigrantes, declara a educação pública obrigatória até o término do ensino médio, concede benefícios em saúde pública, agricultura familiar, microcrédito e proíbe a instalação de bases militares estrangeiras em seu território, o que significará o fim daquela que os EUA mantém em Manta.

A Igreja Católica não gostou da agenda social e organizou várias “missas-protesto” contra a nova Constituição. A oposição também se queixa de diversos pontos, como a possibilidade de que o presidente fique no poder por mais uma década, além de questionar a viabilidade econômica do Estado de bem-estar que a Carta estabelece. Há até um ensaio de movimentos autonomistas nas regiões, capitaneado pelo centro econômico, Guayaquil, mas o Equador não é tão fragmentado politicamente como a Bolívia: a Constituição foi aprovada por 23 das 24 províncias do país.

Um ponto particularmente importante é a gestão da economia. A Constituição (re)cria instrumentos para a atuação do Estado nessa área, sendo o mais relevante a volta do controle sob o Banco Central, que era autônomo. O Equador havia dolarizado sua economia em 2000, com assessoria do ex-ministro da Economia da Argentina, Domingo Cavallo.

Esta é a vigésima Constituição equatoriana desde 1830 – a última era de 1998 – e muitos analistas apontam ceticismo diante da possibilidade de que a nova Carta possa consolidar mudanças e direitos sociais, até pela grande instabilidade política. Ao longo desta década, nenhum dos oito presidentes completou o mandato. O próprio Correa era pouco conhecido até virar ministro da Economia na curta gestão de Alfredo Palacio (2005-2007) e despontar como um líder sem vinculações aos partidos tradicionais.



Assim como Chávez e Morales, Correa fala da nova Constituição como a ferramenta para construir o “socialismo do século XXI”. Analiso brevemente os significados das mudanças, e seus pontos controversos, num pequeno texto que escrevi para a Democracia Viva, a revista do Ibase, cuja edição atual trata dos 20 anos da Constituição do Brasil. O trecho inicial:

No século 19, a América do Sul viveu guerras civis que opuseram liberais e conservadores em temas como relações de poder central/províncias e Estado/Igreja. Ao fim de cada conflito, os vencedores promulgavam nova Constituição. No século 20, direita e esquerda se enfrentaram nas urnas e, com freqüência, as forças de mudança social foram solapadas por golpes militares. Neste início de século 21, os confrontos políticos se dão na Bolívia, no Equador e na Venezuela, em batalhas por novas Constituições que procuram consolidar as mudanças sociais que estão em curso nesses países. Embora tais processos ainda estejam em andamento, já é possível identificar pontos comuns entre eles.

O primeiro é a insatisfação dos movimentos sociais locais com os mecanismos tradicionais da democracia representativa, e seu desejo de complementá-los e fortalecê-los com instrumentos de participação popular. O caso boliviano é exemplar e remonta às mobilizações da década de 1990 pela valorização da comunidade rural indígena, o ayllu, e dos sistemas de governo e de justiça dos povos aymara e quéchua.


Para baixar o texto completo, clique aqui.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O Fardo do Homem Moreno


O conflito envolvendo a empreiteira brasileira Odebrecht e o governo do Equador é bastante ilustrativo do novo cenário com que se depara a política externa brasileira na América do Sul, num momento em que as empresas do país se expandem pela região

Os grandes produtores de hidrocarbonetos na América do Sul (Bolívia, Venezuela e, em menor escala, Equador) obtiveram recursos econômicos que lhes estimularam a ter políticas externas autonomistas, que com certa freqüência levam a conflitos com empresas estrangeiras. No caso específico do Equador, o governo Correa entrou em confronto com diversas empresas nos últimos meses: expulsou a petroleira americana Occidental e forçou firmas de telecomunicação do México e da Espanha a refazer contratos.

As disputas com a Odebrecht se deram porque a empreiteira brasileira atrasou a construção de uma hidreelétrica e entregou a obra com defeito nas turbinas, o que ocasionou parada forçada da produção de energia, causando prejuízos ao Equador. Um acordo vinha sendo negociado entre as autoridades e a empresa, mas Correa optou por golpe de força porque no domingo haverá o referendo da nova Constituição (as pesquisas dão vitória ao presidente por 60%, e sua popularidade está em torno de 70%).



Sua ordem de mandar os militares ocuparem os quatro canteiros de obras da Odebrecht é uma tentativa de apaziguar as Forças Armadas, que estão descontentes com o governo em função do apoio dado às FARCs e a Chávez. Os ministros da Defesa equatorianos duram poucos meses no cargo e os militares têm longa tradição de golpes e intervenção na política. A última foi em 2000, quando o coronel Lucio Gutierres participou numa rebelião em parceria com movimentos sociais, que depôs o presidente Jamil Mahuad. Depois Gutierres foi eleito para o cargo e governou até 2005, quando seus aliados na esquerda o levaram a renunciar, insatisfeitos com sua política econômica conservadora.

A declaração de Correa de que poderia não pagar o empréstimo que o BNDES concedeu a seu governo para a contratação da Odebrecht é apenas retórica, porque tais operações financeiras são feitas pelo mecanismo do CCR, que inclui seguro contra o "risco soberano". Em bom português: garantia contra calotes governamentais.

Naturalmente, nada disso é bom para o Brasil, mas trata-se de instabilidade com a qual o país pode conviver, como aliás o fazem EUA, Espanha e outros países com interesses no Equador. Acredito que na segunda, após a votação sobre a Constituição, Correa estará disposto ao diálogo.

Ademais, ao contrário dos EUA, China, Rússia e Índia, a política externa brasileira para sua vizinhança regional não tem tradição de intervenções militares e sanções econômicas, fora as aventuras bélicas do Império no Prata, entre 1820-1870. Sua ênfase em toda a época republicana foi na resolução pacífica de conflitos e no papel moderador e estabilizador, mediando crises e até guerras entre os demais países sul-americanos. Parafraseando Kipling, digamos que este é o fardo do homem moreno...

Cumprir este Destino Manifesto era mais fácil no passado, pois a própria fragilidade dos laços econômicos entre o Brasil e seus vizinhos significava também a ausência de tensões e conflitos. O cenário atual é diferente: a economia brasileira cresceu e hoje corresponde à cerca de metade do PIB da América do Sul, e as empresas do país são atores decisivos na região, em áreas distintas como o agronegócio no Paraguai e Uruguai, a exploração de gás e petróleo na Bolívia e Equador e a construção civil na Argentina, Peru e Venezuela.

Acredito que, com o tempo, a diplomacia do Brasil encontrará novos instrumentos para gerir essas tensões, talvez algum tipo de acordo de proteção de investimentos, ou um tribunal de resolução de controvérsias entre empresas e governos, como o que existe no Banco Mundial.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Procurando pela Revolução


Já havia escrito aqui no blog sobre a excelente série de documentários “Por que democracia?”, projeto internacional que no Brasil é exibido pelo Canal Futura. Mas foi somente no domingo que consegui assistir ao episódio latino-americano. “Procurando pela Revolução“ é dirigido pelo cineasta argentino Rodrigo Vazquez e aborda a Bolívia nos dois primeiros anos do governo Evo Morales, com ênfase mais do que bem-vinda na mobilização das mulheres indígenas.

A protagonista do filme é Jiovanna, líder de um grupo feminino cujo principal objetivo é a geração de empregos. Ela é uma personalidade em ascensão no Movimento ao Socialismo (MAS), o partido de Morales, e é eleita deputada na mesma votação que consagra Evo como presidente. A expectativa das mulheres que militavam com ela é que sua atuação no parlamento resolva o problema da falta de trabalho, conseguindo recursos públicos para o programa que desenvolviam com grande dificuldade.

Você pode assistir a um trecho do documentário clicando abaixo:



Jiovanna parece comprometida com a causa das mulheres, mas também está fascinada com sua nova condição de deputada e o documentário a acompanha comprando roupas de luxo num shopping center ou falando com admiração dos colegas “inteligentes e cultos” com os quais convive no parlamento. Simultaneamente, Morales enfrenta dificuldades crescentes com os partidos de direita, incluindo insólita “greve de senadores”, que se recusam a votar projetos importantes para o governo.

Os meses vão passando e as mulheres que trabalhavam com Jiovanna não conseguem entender a incapacidade do governo de responder às suas demandas, o que leva a uma série de acusações e agressões contra a deputada. A situação piora quando sua principal auxiliar cai num escândalo de corrupção, acusada de pedir em dinheiro em troca da promessa de um emprego.

O MAS tem forte vínculo tão forte com os movimentos sociais que seus integrantes preferem defini-lo como “instrumento político” dos grupos populares, e não como partido. Nomenclaturas à parte isso se traduz em grande capacidade das bases em fiscalizarem os dirigentes e cobrarem a fidelidade às decisões coletivas. A relação é retratada de modo bem claro no filme e impressiona a força da mobilização do MAS.



A situação enfrentada pelas mulheres mostradas na história se parece muito com um caso que minha equipe e eu estudamos na Bolívia, só que envolvendo jovens da cidade de El Alto, que exigiam a criação de uma escola de formação de professores. Conseguiram, mas com um número de vagas bem abaixo do que desejavam. Certamente não falta vontade do governo Morales em atender a essas reivindicações, mas a escassez de dinheiro é brutal, e o Estado foi muito fragilizado pelas reformas que se seguiram à hiperinflação do início da década de 1980.

O belo documentário de Rodrigo Vazquez ajuda a entender o que acontece na Bolívia atual, minha única crítica séria é sua obsessão em traçar paralelos entre Morales e Che Guevara. Ora, os movimentos sociais atuais têm sua luz própria, e inovações na organização política deveras interessantes.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Tempos Sombrios para a África do Sul


A África do Sul é um dos principais aliados internacionais do Brasil, e as duas nações têm problemas tão parecidos que me espanta a escassez de informações disponíveis por aqui sobre o que se passa com o amigo do outro lado do Atlântico. Nos últimos dias aconteceu a maior mudança política sul-africana desde o fim do apartheid, com a renúncia das principais autoridades do governo: presidente, vice, 11 ministros, entre outros. A nova liderança está com o atual líder do partido oficial, o Congresso Nacional Africano - Jacob Zuma. Ele provavelmente sucederá Thabo Mbeki como chefe de Estado nas eleições de abril. Mais do que uma dança de cadeiras entre poderosos, é uma transformação com profundas implicações sociais, econômicas e étnicas. Algumas delas, perturbadoras.

escrevi sobre Zuma, as acusações de corrupção, estupro e suas incraditáveis declarações sobre AIDS. Tratei também de sua rivalidade com o presidente Mbeki. Portanto, vou só aprofundar certas questões. Comecemos pelo dinheiro.

A África do Sul é uma economia industrial moderna. O PIB de quase US$300 bilhões é o maior do continente e tem crescido em torno de 5% ao ano. A renda per capita é de quase US$10 mil em paridade do poder de compra – semelhante à do Brasil. Os problemas aparecem quando olhamos a situação social: metade da população na pobreza, desemprego acima dos 20% (passa de 40% em algumas regiões) e índice Gini de desigualdade de 0,65, pior do que os mais terríveis já registrados na sociedade brasileira. Violência e AIDS são selvagemente disseminados.

Embora os governos Mandela e Mbeki tenham feito muito pelo estabelecimento da democracia e dos direitos civis e políticos, o aspecto sócio-econômico é sombrio. A agenda nessa área foi conservadora e procurou acima de tudo conquistar a confiança de investidores internacionais e marcar a diferença com relação ao período autárquico do apartheid e à retórica anti-capitalista que esteve presente em boa parte da luta de libertação.

Zuma é zulu, e poderá ser o primeiro representante do maior grupo étnico da África do Sul a alcançar a presidência. Mandela e Mbeki são xhosas, povo que sofreu o impacto da colonização européia já no século XVII, e quase foi extinto durante a década de 1850, quando uma líder messiânica levou-os a dizimar seu gado, principal fonte de sobrevivência. Depois disso, os xhosa se subordinaram ao império britânico e com o tempo a elite local chegou a ter benefícios. Mandela cresceu na Corte xhosa, pois seu pai havia sido primeiro-ministro do rei. Ele mesmo fora treinado quando jovem para ocupar a posição, recebendo a raríssima distinção de estudar Direito na universidade dos brancos.

Os zulus foram afetados mais tarde pela colonização européia, só no século XIX, e desenvolveram um sofisticado sistema militar para enfrentar os invasores, comparável àqueles criados em Esparta ou na Prússia. Infligiram derrotas humilhantes ao império britânico e, embora finalmente vencidos, nunca se consideraram conquistados.



O apartheid jogou com as rivalidades entre os dois grupos e favoreceu os zulus e seu poderoso rei, em detrimento dos xhosa, cujos intelectuais formaram boa parte do núcleo dirigentes do Congresso Nacional Africano e da oposição ao regime racista. Os anos finais do apartheid foram marcados por onda de violência entre as duas etnias que esteve perto, muito perto, de inviabilizar a transição para a democracia. Claro, havia zulus importantes no Congresso Nacional: o próprio Zuma era uma figura de destaque desde seus tempos de guerrilheiro na década de 1960, e ficou preso ao lado da Mandela na mítica prisão de Robben Island. Sua parceria com Mbeki foi fundamental para garantir o fim das hostilidades entre os dois grupos étnicos.

Zuma apela aos sentimentos rebeldes e esperançosos do passado, por seu histórico de guerrilheiro e sua vivência de classe trabalhadora, ao contrário do pedigree aristocrático de Mbeki, um intelectual pós-graduado na Inglaterra. Contraste ainda mais marcante pela diferenciação étnica, que reproduz os esteriótipos de longa data entre zulus e xhosas, e isso num momento em que a violência xenofóbica contra imigrantes de outros países africanos, sobretudo do Zimbábue, aumentou bastante.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Nacionalismo na América Latina



Nos últimos 25 anos o estudo do nacionalismo passou por rica reformulação, em parte estimulada pela obra-prima “Comunidades Imaginadas”, de Benedict Anderson, e muito também pelo ressurgimento dessas ideologias na Europa, na esteira da queda do comunismo, e da necessidade de entender o lugar que tais correntes de pensamento ocupam nesta época de integração regional e instituições globais. A voga começou a chegar na América Latina e tem rendido pesquisas instigantes, como se pode comprovar pela leitura de “Nacionalismo no Novo Mundo: a formação de Estados-Nação no século XIX“, coletânea organizada pelos historiadores Marco Pamplona e Dan Doyle, que também dirigem a Association for Research on Ethnicity and Nationalism in the Americas.

Embora metade dos artigos digam respeito aos Estados Unidos, me limitarei a comentar os textos sobre a América Latina, e o livro tem ensaios muito bons sobre Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Cuba e México – aliás, Pamplona é organizador de excelente série de livros sobre a independência das nações do continente.



Basicamente, os autores se dividem entre estudar as manifestações da criação da nacionalidade realizadas pela elite (como obras artísticas e literárias) e abordar os processos de construção popular (rebeliões, festas, lutas políticas) que envolveram os pobres, em particular índios e negros. Ambas as abordagens são necessárias e têm seu valor, mas gostei mais dos artigos que seguem o segundo enfoque.

De maneira geral, o país latino-americano que teve algum sucesso em incorporar as etnias discriminadas à nova nacionalidade foi o México, mesmo que de maneira mais simbólica do que concreta, pelo menos até a Revolução do início do século XX - abaixo, mural de Diego Rivera sobre a história mexicana. Os artigos observam o padrão de elites que buscam, quando muito, atrair os mestiços (Bolívia, Brasil, Colômbia), recorrer em massa à imigração européia (Argentina) ou se dividir entre a expressiva participação dos negros nas guerras de independência e a recusa em aceitar o papel da questão racial para a formação da nacionalidade (Cuba).



Os estudiosos do nacionalismo europeu têm ressaltado os papéis primordiais exercidos pela imprensa e pela escola em construir cidadãos e consolidar a imagem de um país unificado, com o culto aos heróis, história, batalhas gloriosas etc. Na América Latina, a Argentina reproduz o modelo de modo impressionante, principalmente como maneira de transformar em argentinos a massa de imigrantes que desembarcavam no porto de Buenos Aires. Nos demais países analisados, a fragilidade do sistema educacional impediu a estratégia escolar, mas há certo consenso de que a imprensa e as festas patrióticas de algum modo cumpriram essas funções. Gostaria de ler mais a respeito, é um ponto que merece pesquisas.

Outra questão da qual senti falta foi a economia do nacionalismo. Que tipo de pensamento os próceres latino-americanos tinham sobre o tema, em época na qual seus países dependiam totalmente do comércio de poucos bens agrícolas ou minerais com a Europa? O próprio sistema tributário do período era muito voltado para as rendas da alfândega, o que rendia disputas intermináveis na Argentina, por exemplo. Em que medidas tais circunstâncias influenciaram e restringiram a doutrina dos novos Estados?

Esta primeira década do século XXI tem sido marcada por governos latino-americanos fortemente nacionalistas e embora eu seja simpático a muitas dessas manifestações, há um lado sombrio que aparece com freqüência, e tem conseqüência tanto em medidas econômicas nocivas quanto em retóricas estridentes e choques de fronteira, às vezes beirando o militarismo e a guerra. Felizmente não somos os Bálcãs ou o Cáucaso, mas penso que está na hora de refletir mais demoradamente sobre os significados do nacionalismo para as relações entre os países da região, em particular diante dos processos de integração que se multiplicam por aqui. Fiquei entusiasmado pela leitura de “States and Power in Africa”, de Jeffrey Herbst, que tem abordagem semelhante e nada impede pesquisa assim na América Latina.

domingo, 21 de setembro de 2008

O Colapso do Paquistão



A crise financeira global têm afastado as manchetes da piora acelerada da situação política no Paquistão, onde nas últimos dias houve um atentado que explodiu um dos maiores hotéis da capital (foto), além de incidentes militares envolvendo tropas paquistanesas e americanas, tudo isso no contexto da transição para novo e frágil governo de Asif Zardari e de ofensiva dos Talibãs no vizinho Afeganistão. O risco é de colapso da autoridade do Estado e da ascensão de grupos fundamentalistas, em país com armas nucleares.

Paquistão signfiica “Terra dos Puros” e o país surgiu como projeto de nação para os muçulmanos que viviam no império britânico no subcontinente indiano. Nunca alcançou este objetivo: mais islâmicos vivem na Índia secular do que no Estado criado para sua religião. O próprio Paquistão se fragmentou na década de 1970, com sua porção oriental se tornando o Bangladesh após guerra civil que se assemelhou a genocídio pela violência envolvida. Enquanto a política indiana mostrou notável adesão à democracia parlamentarista, a paquistanesa degenerou para o revezamento entre ditaduras militares e cleptocracias civis, em particular a da família Bhutto.

O mais recente regime autoritário foi o do general Musharraf e durou de 1999 até 2008. Década marcada por tensões com a Índia – uma guerra de fronteira na Cachemira, que quase teve replay três anos depois – e pelo apoio da ditadura à guerra da OTAN contra os Talibãs e a Al-Qaeda no Afeganistão. Musharraf se mostrou como aliado decisivo dos Estados Unidos no pós-11 de setembro, mas sua importância estava justamente em poder controlar sua frágil coalizão governamental, em particular os elementos rebeldes nas Forças Armadas, cujo vínculo histórico é com os combatentes muçulmanos no Afeganistão e na Cachemira.

Os militares paquistaneses também se mostraram inquietos com a crescente proximidade entre os Estados Unidos e seu rival tradicional, a Índia. As relações entre Washginton e Nova Délhi, ruins durante a Guerra Fria, tornaram-se quase uma aliança, na medida em que os americanos contam com os indianos para se contrapor à ascensão da China e, igualmente, como uma opção estratégica caso o Paquistão caia em guerra civil.

Apesar dos bilhões de dólares em ajuda militar americana, Musharraf perdeu popularidade rapidamente nos últimos anos e a violência política se multiplicou, tanto em atentados terroristas quando na ação de guerrilheiros talibãs nas chamadas “áreas tribais” do Paquistão.




Essas regiões correspondem à fronteira máxima alcançada pelo império britânico na Ásia Central e são administradas de maneira semi-autônoma por grupos étnicos que estão presentes tanto no Paquistão quanto no Afeganistão, como os pashtuns. Tem inclusive sua própria força policial de fronteira e as ligações com os Talibãs e Al-Qaeda são profundas. Há poucos dias os Estados Unidos perderam a paciência e Bush autorizou operações militares em território paquistânes. Os soldados americanos foram recebidos à bala.



Tradicionalmente, os meses de inverno costumam ser pacíficos na região, devido ao rigor do clima. Mas os analistas especulam que agora será diferente. Os Estados Unidos estariam planejando uma ofensiva no Afeganistão, como resposta ao crescimento dos ataques dos Talibãs durante o verão, que mataram muitos civis (gráfico acima). E a guerra já dura sete anos. Foi anunciada uma transferência de tropas do Iraque para lá, justamente para levar adiante as operações de represália.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A República Bolivariana de Wall Street



Os Estados Unidos são tão dedicados à intervenção estatal na economia que têm a palavra “Estado” em seu próprio nome. Se sua elite política de fato tivesse compromisso com o laisser-faire, o país se chamaria “Mercados Unidos”. Com fúria de fazer inveja a tenente-coronel venezuelano, os bolivarianos de Wall Street tomaram diversas medidas para aprofundar a nacionalização econômica e tentar deter a crise.

A revolução atravessou o Atlântico, e o Financial Times, o Pravda da nova ordem, assim descreveu os eventos recentes: “a maior expansão em tempos de paz do papel do governo no sistema financeiro, desde a Grande Depressão, no que pareceu a muitos marcar o fim da era de desregulação Reaganita”.

A semana teve baixas pesadas
: a falência do Lehman Brothers, a compra apressada da Merrill Linch pelo Bank of America (para evitar colpaso semelhante), a intervenção estatal na seguradora AIG, e grandes quedas nas bolsas mundiais. Isso no contexto das recentes crises envolvendo Bear Sterns, Fannie Mae e Freddie Mac.

Em seguida veio a reação: as iniciativas coordenadas dos principais bancos centrais do planeta, as restrições da Securities and Exchange Commission às operações de short-selling e o anúncio pelo governo dos EUA de um ainda vago pacote de centenas de bilhões de dólares para purgar o sistema financeiro do país de seus ativos tóxicos.



Os mercados mais relevantes do mundo responderam com altas de 8% a 10% nesta sexta, em muitos casos batendo os recordes de elevação para um só dia - acima, o comportamento da Bolsa de Nova York ao longo desta semana. Na hora do perigo, todo mundo gosta do braço forte e da mão amiga (e bastante visível, ao contrário daquela do Adam Smith) do Estado.

Aguardemos os próximos lances da emocionante contenda. Quanto a mim, acho que não falta muito para George W. Bush começar a citar Bolívar. Populista texano de uma figa, nunca me enganou!

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Panorama de Cuba



Ao longo do meu trabalho em cooperação internacional, aprendi a admirar as fundações partidárias da Alemanha, que atuam na América Latina com grande competência e capacidade de análise. Um exemplo desse enfoque é a revista Nueva Sociedad, editada pela Fundação Friedrich Ebert, cuja edição atual é dedicada à situação de Cuba sob Raúl Castro. São 11 artigos, dos quais extraí as informações que cito neste post.

Comecemos pela economia. Cuba conseguiu deixar para trás o chamado “período especial”, a severa crise provocada pelo fim do bloco soviético. Os efeitos foram terríveis para a ilha: o PIB caiu 35%, as exportações, 47% e as importações, incríveis 70% - o que explica a escassez material que vi na minha visita ao país, em 2001.

De lá para cá, Cuba se reergueu com a ajuda de alguns amigos: Venezuela e China, mas também Canadá e os países da União Européia, sobretudo a Espanha. Os principais investimentos estrangeiros têm sido na área da mineração, petróleo, telecomunicações e turismo. Isso mostra o novo perfil econômico cubano, centrado em serviços e em exportações minerais, em particular de níquel. A produção petrolífera se multiplicou por seis desde 1990, algo fundamental para um país que historicamente sofreu de forte escassez de combustível.



Apesar das melhorias, vários problemas persistem na economia. A desigualdade aumentou na medida em que apenas alguns cubanos têm acesso aos dólares dos turistas, contudo o índice Gini cubano é de 0,38, melhor do que o dos Estados Unidos e comparável aos dos países latinos da Europa. Raúl Castro tem acenado com concessões para essa nova classe média, é esse o sentido da recente abertura para importar eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos.

Mais preocupante é a situação agrícola. A produção de alimentos caiu muito, em alguns setores para metade do que havia sido. O resultado é uma perigosa dependência de importações, em momento de alta nos preços agrícolas. Isso explica porque Raúl Castro tem apostado na privatização das fazendas coletivas, e analistas sugerem que ele aplique o modelo chinês de dar mais autonomia produtiva aos municípios. As reformas têm sido limitadas, quase 80% da economia continuam sob controle estatal.

Outra transformação significativa é na indústria do açúcar, que sofreu bastante nos últimos anos com a falta de capital e a perda de mercados internacionais. O governo começou a fechar usinas e os planos são de manter abertas apenas 40 instalações, de um total que já foi de quase 180.



Internacionalmente, Cuba está menos isolada. Além da supra-citada aliança com Venezuela e China, a União Européia suspendeu as sanções que havia adotado quando o regime cubano prendera dezenas de dissidentes, no início da década. Ferramentas tradicionais da diplomacia de Havana, como o envio de médicos para países em desenvolvimento, continuam a pleno funcionamento: são cerca de 30 mil profissionais de saúde atuando em 70 países, além de 10 mil estudantes estrangeiros nas escolas médicas de Cuba (acima, foto do projeto venezuelano Barrio Adentro, que coloca médicos cubanos em favelas e bairros pobres). O mais impressionante é que o país começou a investir em pesquisa biotecnológica na Ásia, em parcerias com China e Malásia.

Infelizmente, o número especial da Nueva Sociedad não trata das questões relativas à democracia e aos direitos civis e políticos. Eu gostaria de ter mais detalhes sobre a ação de iniciativas de oposição ao regime de Raúl Castro, como o Projeto Varela, e quero entender o padrão da nova leva de migração, que já começou a ser comparada ao célebre êxodo de Mariel, da década de 1980. Me pergunto também se a Rússia ressurgente que começa seu retorno ao Caribe venezuelano não irá buscar algum tipo de envolvimento com seu antigo aliado, hipótese que me parece bastante possível, dado interesses comuns na área de energia.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Fórmula para o Caos


Ainda é raro que brasileiros escrevam livros sobre os vizinhos sul-americanos. “Fórmula para o Caos – a derrubada de Salvador Allende”, do cientista político Moniz Bandeira, contribui não só para a história do Chile, mas também para a da região como um todo, mostrando como as tensões do país andino estavam ligadas aos desdobramentos em outras nações da região, em especial Bolívia e Uruguai. A política externa do Brasil sai mal do retrato, que mostra o quanto o governo brasileiro influenciou na destruição da democracia chilena.

Embora os fatos básicos da queda de Allende fossem bastante conhecidos há muitos anos, Moniz Bandeira conseguiu novos documentos liberados pelo governo dos EUA durante a presidência Clinton, além de ter tido acesso livre aos arquivos diplomáticos brasileiros, em função de sua amizade com a atual chefia do Itamaraty. O resultado é um levantamento detalhado sobre os mecanismos utilizados pelas autoridades dos dois países para derrubar Allende: dinheiro, propaganda e pressões econômicas, no caso dos americanos, apoio político e logístico no que toca aos brasileiros.



O governo Allende (1970-1973) se deu em meio a um contexto turbulento na América do Sul, marcado por golpe contra uma ditadura militar progressista na Bolívia e pelo combate à rebelião dos Tupamaros no Uruguai. Em meio a isso, a Argentina do general Lanusse passava por delicada transição política para o retorno de Perón, e resolveu apostar numa diplomacia de “pluralismo ideológico”, ajudando Allende e acreditando com isso que isolaria o Brasil, então no momento mais violento de sua ditadura de 21 anos.

Moniz dedica talvez metade do livro às pressões internacionais contra Allende, mas boa parte da obra aborda algo que me interessa mais: as contradições internas da política chilena. O presidente liderava a Unidade Popular, uma instável coligação dos partidos de esquerda: socialista, comunista, esquerda cristã, MAPU e Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR). Quase todos acreditavam que Allende era demasiado lento e moderado e o encurralavam com invasões de terra, tomadas de fábricas, apoio à guerrilha boliviana, formação de milícias e construção de estruturas de “poder popular paralelo”, como cordões industriais e assembléias populares. Uma longa visita de Fidel Castro, de três semanas de duração, polarizou ainda mais os ânimos.



Para piorar, a Unidade Popular era minoritária no Congresso e precisava enfrentar fortes movimentos da direita nacionalista e católica, com setores extremistas promovendo bloqueios econômicos, greves patronais (como a célebre paralisação dos transportadores, que quase destruiu a economia), marchas e atentados. Desde o início o Exército resistiu a Allende e o fiel da balança militar foram generais legalistas, como René Schneider (assassinado por golpistas) e Carlos Prats (morto por terroristas de direita, no exílio, já na ditadura Pinochet). O partido de centro, a Democracia Cristã, se dividiu aos poucos e sua parcela hegemônica apostou contra a ordem constitucional, acreditando que os militares a livrariam de Allende e abririam caminho para sua volta ao poder. Teve que esperar 17 anos.

Moniz foi, desde a época, cético com relação ao projeto de Allende de construir o “socialismo pela via chilena”, à base de “vinho e empanadas”. O cientista político questiona o mito do “excepcionalismo do Chile”, que seria supostamente mais democrático e estável, e analisa diversos episódios de golpes militares e guerras civis, em particular a que levou ao suicídio do presidente Balmaceda, em 1891, numa disputa feroz pelos espólios minerais tomados à Bolívia e ao Peru na Guerra do Pacífico.

O livro de Moniz Bandeira vai na mesma direção de vários intelectuais chilenos contemporâneos, que se mostram críticos das contradições do socialismo utópico de Allende e ressaltam o quanto a tradição política do Chile é marcada pelo autoritarismo e pela violência.

Dica: visitem o site da Fundação Salvador Allende, com excelente material multimídia.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

A Arte da Mediação



A crise na Bolívia resultou em excelente oportunidade para a recém-criada União das Nações Sul-Americanas. Graças ao dinamismo e à habilidade diplomática da dirigente da organização, a presidente chilena, Michelle Bachelet, sete mandatários do continente se reuniram ontem em Santiago e manifestaram o apoio ao governo constitucional boliviano, rejeitando intentos de golpes e simultaneamente forçando Evo Morales a negociar com a oposição.

A situação parece ter se acalmado na Bolívia, com os grupos contrários a Morales suspendendo bloqueios de estrada. No entanto, permanecem tensões sérias no departamento de Pando, na Amazônia boliviana, onde o governo local reprimiu de maneira violenta partidários de Evo, e matou 30 pessoas. Há denúncias de que capangas brasileiros e peruanos participaram do massacre. A área está sob Estado de Sítio e os militares prenderam dez suspeitos.

Outro ponto negativo na crise foi a postura apática do Brasil. O país que criou a Unasul mostrou pouca disposição em ativá-la. Mais do que nisso. Nesta semana, dois destacados membros da elite política brasileira, o embaixador Rubens Ricupero e o deputado e ex-ministro Delfim Netto, publicaram textos cuja tônica era a impossibilidade de mediar o conflito boliviano. Supostamente, os vizinhos não querem ser ajudados...

As declarações são típicas do pior da arrogância e prepotência brasileira com relação à América do Sul e não por acaso vieram de duas pessoas cujas carreiras foram construídas principalmente sob a ditadura. Contudo, esqueceram de mencionar em seus artigos o quanto o regime autoritário do Brasil interveio na Bolívia, conspirando para derrubar governantes progressistas como Juan José Torres e ajudando a instalar a ditadura de Hugo Banzer, que o jornalista Elio Gaspari descreveu como “o xodó da diplomacia militar brasileira”.

Mas os tempos mudaram. Bachelet foi exemplar em sua condução da reunião, esvaziando o espaço para as aventuras de Chávez e para a polarização com os Estados Unidos, coordenando declaração que apóia a democracia na Bolívia, demanda o fim da violência e oferece ajuda regional para a mediação da crise. Em seus pronunciamentos, a presidente chilena lembrou do golpe contra seu antecessor Salvador Allende, triste aniversário que se celebrou há poucos dias.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A Itália de Berlusconi


Houve um tempo em que a Itália era referência para a esquerda mundial, tanto pela notável qualidade de seus pensadores e artistas quanto pelas gestões municipais bem-sucedidas do Partido Comunista. Naturalmente, esse quadro pertence a um passado distante. A Europa atual é conservadora, de direita ou de centro, e mesmo nesse cenário a vida política italiana como sendo particularmente refratária às mudanças. O símbolo mor desse imobilismo sem dúvida é o primeiro-ministro e magnata da mídia Silvio Berlusconi, alvo do documentário satírico "Viva Zapatero!", dirigido pela humorista Sabina Guzzanti.

Guzzanti é famosa por seu humor mordaz e em pleno reinado de Berlusconi foi convidada pela TV pública, a RAI, para montar um programa cômico sobre a política italiana. Durou apenas uma apresentação. Apesar do sucesso de audiência, a emissora o cancelou quando a metralhadora giratória de Sabina se voltou contra o primeiro-ministro, em particular os riscos da concentração de poder em suas mãos oriundos do controle das emissoras públicas e e de suas próprias empresas privadas.

O caso não foi isolado. Além de Guzzanti, jornalistas de prestígio na Itália, como Enzo Biagi (que narrou a queda do fascimo em 1943!) e Michele Santoro (nenhum parentesco com este blogueiro!) perderam os empregos na RAI por suas críticas a Berlusconi. "Viva Zapatero" é um acerto de contas de Guzzanti com a cultura da censura e do medo que se instalou na Itália, e que levou o país a ser classificado pela Freedom House como "parcialmente livre" no que toca à imprensa, na mesma escala de muitas nações latino-americanas e africanas.



O título faz menção à decisão do primeiro-ministro da Espanha de retirar seu poder de nomear os executivos da TV pública, mas apesar da referência os modelos que Guzzanti cita no filme são o Reino Unido e a França, cujos jornalistas e humoristas comentam horrorizados os rompantes autoritários que observam na Itália. Um exemplo é o editor da revista britânica The Economist, que fala sobre os processos milionários que Berlusconi moveu contra a publicação - aliás, ele perdeu!

Indignação ausente em boa parte da oposição italiana, cujos interesses se misturaram tanto aos de Berlusconi que por vezes é difícil distingir quem é governo e quem o critica. Muitos dos melhores momentos do filme vêm dos depoimentos constrangedores dos líderes oposicionistas.

Os governistas são mais diretos e basicamente afirmam que Guzzanti não fazia "sátira" ou "humor", mas jornalismo, e que portanto tinha a obrigação de ser imparcial. Tanto quanto os jornais de Berlusconi, presume-se, e os retratos da mídia oficial oferecidos no filme são impagáveis, e fazem a Fox News ou a Veja parecerem... Bem, fazem com que eles se pareçam como as versões locais da mediocridade italiana.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Veneno e Antídoto


Na ONG em que trabalho costumamos exibir filmes sobre temas sociais e em seguida realizarmos debates com alguém envolvido em sua produção. Ontem foi a vez do excelente documentário “O Veneno e o Antídoto – uma visão da violência na Colômbia”, dirigido por Estevão Ciavatta.

O filme nasceu de um convite recebido pelo Afroreggae para visitar a Colômbia e o grupo resolveu aproveitar a visita para filmar as maneiras pelas quais as pessoas lidam com a resolução de conflitos violentos. Tudo a ver com uma organização que nasceu como reação da sociedade às chacinas que ocorreram nas favelas do Rio de Janeiro no início da década de 1990. O documentário mostra iniciativas em três locais: Bogotá, Medellín e o povoado de San José del Apartadó, próximo à fronteira entre Colômbia e Panamá.

Em Bogotá e Medellín, o filme entrevista políticos, ativistas comunitários, ex-paramilitares em reabilitação, vítimas da violência e artistas. Impressiona a gama de políticas públicas bem-sucedidas implementadas nas duas cidades, como a instalação de centros de conciliação, espécie de juizados de pequenas causas dedicados a resolver conflitos entre moradores de favelas e áreas pobres. Os próprios habitantes locais são treinados para mediar nas disputas, com resultados excelentes. De fato, analistas do confronto armado colombiano apontam que a violência política acabou por contaminar as relações pessoais cotidianas, se espalhando para brigas banais de trânsito ou entre vizinhos.



Outro elemento importante é a reforma urbana empreendida com o propósito de valorizar os espaços públicos, tais como praças e parques. Um componente foi o de melhorar o acesso às favelas, como os teleféricos de Medellín (foto acima), além de ruas mais amplas. A idéia é que as pessoas passem a valorizar mais a cidade e que os laços sociais entre os moradores se tornem mais fortes.

Também houve incentivos culturais, dos quais o mais impressionante é a extraordinária rede de bilbliotecas públicas, sem paralelo na América do Sul. Na foto abaixo – uma delas, em Bogotá. Aliás, nunca canso de me maravilhar com o altíssimo nível cultural colombiano, algo que também chamou a atenção dos espectadores, porque as pessoas entrevistadas no filme eram muito articuladas e precisas ao narrar suas histórias.



Nas cidades colombianas a taxa de homicídios caiu para 10% do que foi no auge do conflito, mas a zona rural continua muito violenta. O documentário mostra a situação do norte do país, uma região disputada por diversos grupos armados por sua importância na rota para escoar drogas. Uma das mulheres entrevistadas no filme conta que perdeu filhos para cada um dos atores da guerra: Exército, paramilitares, guerrilhas.

Sendo assim, não é de espantar que muitos fujam do interior rumo às cidades, migrantes que na Colômbia são conhecidos como “desplazados” - na realidade, refugiados de guerra em seu próprio país.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A Crise na Bolívia


Nos últimos dois dias, manifestantes contra Evo Morales atacaram o gasoduto Brasil-Bolívia e causaram danos que fizeram o envio de gás cair para 45% do normal (embora a previsão é que o fluxo será reestabelecido ainda hoje). Diabos, onde estão os americanos quando precisamos chamar alguém de terrorista?

Bem, talvez estejam fazendo as malas. O governo boliviano reagiu decretando "persona non grata" o embaixador dos EUA em La Paz, acusando-o de planejar um golpe com a oposição.

Morales foi eleito presidente no primeiro turno, com a maioria dos votos, e há pouco mais de um mês teve o respaldo democrático confirmado num referendo nacional, que venceu por boa margem. Mas grupos oposicionistas na região da Meia Lua continuam a protestar contra o governo, pois contrários à nova Constituição que talvez seja levada a referendo popular no fim do ano (há polêmica jurídica em curso) e exigem maior fatia dos recursos oriundos da exportação de gás.



A oposição atacou o governo com choques de rua, bloqueio de estradas e até impedindo o avião do presidente Morales de pousar em algumas cidades. A política boliviana é com freqüência tensa e instável, mas não costuma resultar em violência de larga escala. Os acontecimentos de ontem e de hoje são de virulência incomum, pela destruição da infra-estrutura econômica mais importante da Bolívia. Naturalmente, o objetivo é arrastar o Brasil para forçar o governo Morales a fazer concessões.

Duvido que isso ocorra, ao menos na escala desejada pela oposição boliviana, porque a Petrobras tem condições de lidar com a diminuição do fornecimento do país vizinho. A Nota Oficial emitida pelo Brasil afirma: "O Governo brasileiro se solidariza com o Governo constitucional da Bolívia e espera que cessem imediatamente as ações dos grupos que lançam mão da violência e da intimidação."



Evo Morales agiu mal expulsando o embaixador americano (os dois estão juntos na foto acima). Philip Goldberg nunca foi bem visto na Bolívia, em função de seu posto anterior como chefe de missão no Kosovo. A avaliação de La Paz é que ele seria agente de projeto de fragmentação semelhante, separando a Meia Lua do resto da nação. É ir longe demais na analogia regional. Duvido que Washignton tenha qualquer simpatia por uma guerra civil na América do Sul, que certamente atiçaria Chávez e radicalizaria o continente.

A expulsão é novo capítulo na turbulenta história do movimento cocalero com os Estados Unidos, uma inimizade que começou na década de 1980 quando os americanos financiaram violento programa de destruição das plantações de coca. A relação tem lances tragicômicos. Nas eleições de 2002, o então embaixador dos EUA, Manuel Rocha, chamou Morales de traficante e recomendou os bolivanos a votarem em outros candidatos. O resultado foi o crescimento impressionante do apoio a Evo, que terminou a disputa em segundo lugar.

Ele venceu em 2005, claro, e a agenda com os Estados Unidos foi tumultuada, pela questão cocaleira, pela aliança entre Morales e Chávez e pela recusa americana em extraditar o ex-presidente Sanchéz de Lozada, que fugiu para Miami (nem sempre os bandidos escolhem o Rio de Janeiro...) depois de ordenar violenta repressão policial aos protestos contra sua política de exploração do gás natural, com dezenas de mortos. Apesar disso, os EUA não desmantelaram os benefícios econômicos à Bolívia, como as preferências tarifárias e a cooperação técnica em desenvolvimento. A principal iniciativa da área, a ATDPA, deve se encerrar em dezembro. No quadro atual, o que aconterá?

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Caminhos Diplomáticos na América do Sul


Nestes últimos dias dei uma maratona de aulas no MBA de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. O tema foram as estratégias de política externa na América do Sul, que estruturei como a exposição e o debate sobre a diplomacia da Argentina, Chile, Colômbia e Venezuela. Embora o Brasil não fosse, explicitamente, o objeto da discussão, é claro que as posturas do país ficaram muito em foco.

Comecei a maratona comentando com os alunos sobre a temporada que passei em Buenos Aires e os debates acadêmicos dos quais participei a respeito da existência ou não de uma teoria latino-americana de RI, uma maneira própria ao continente de examinar os temas internacionais. Mencionei as conclusões principais, de que não há uma só corrente, mas várias, e que elas de fato apontam para perspectivas peculiares à região, sobretudo pela ênfase que dão ao desenvolvimento econômico e à integração regional.

De fato, foram as abordagens que predominaram nas aulas. A busca da Argentina por saber qual o lugar do país na nova ordem internacional, em que já não é mais a nação mais próspera da região, mas tampouco quer ser o Canadá do Brasil. As experiências do Chile que o conformam como um verdadeiro “laboratório do desenvolvimento” e seus esforços em reassumir papéis de destaque na América Latina – a secretaria-geral da OEA, o comando político da missão de paz no Haiti.



No caso da Colômbia, ressaltei o desenrolar do conflito armado no país, da década de 1940 à libertação de Ingrid Betancourt. O interesse dos alunos se concentrou nas implicações regionais das ações das FARCs, como a crise que envolveu Equador e Venezuela, e uma discussão sobre os significados das posições do Brasil. Opinei que a política externa brasileira tem sido omissa quanto à tragédia humanitária no país vizinho, e que esse vazio abriu caminho para a ação de atores de fora da região, como o presidente francês Nicholas Sarkozy.

Com relação à Venezuela, como não poderia deixar de ser, o foco dos debates foi a ascensão de Hugo Chávez e suas ações sempre controvertidas, ainda que eu tenha ressaltado a semelhança com o ideário terceiro-mundista dos governos dos anos 1970. Causou sensação um slide que exibi com fotos do programa de TV “Alô, Presidente”, mistura de Voz do Brasil com Hebe, que o mandatário venezuelano apresenta semanalmente. No dia 24 de agosto ele se dedicou a traçar novos limites marítimos entre seu país e a Colômbia. Como diz meu irmão, tenho a especialização profissional menos tediosa do planeta.



As aulas abordaram bastante a política doméstica de cada país, algo que considero fundamental para compreender as relações internacionais da região, mas que nem sempre é a tônica dos programas acadêmicos, ainda muito baseados em modelos abstratos que pouco lidam com a história local. E faz falta esse tipo de conhecimento aos alunos. O noticiário da imprensa é muito parco, quando não panfletário, e a falta de familiaridade com a realidade dos vizinhos, sério entrave a ser superado.

Naturalmente, sou pago para ajudar a resolver o problema e fiquei satisfeito pelo alto interesse dos alunos e pela qualidade das perguntas. Ao longo da maratona discutimos temas tão diversos quanto as rivalidades de poder dentro do peronismo, a ascensão do movimento estudantil chileno, as perspectivas (ou antes a falta delas) para que as FARCs se tornem um partido político, as guerras platinas travadas pelo Brasil no século XIX e o colapso do sistema político venezuelano após a rebelião do Caracazo, que abriu caminho para a Chávez. Uma história de altos e baixos, alegre ou triste, esperançosa ou dramática. Mas sempre a nossa história.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A Participação Política dos Jovens


Pela manhã estive nos estúdios do Canal Futura e dei uma entrevista ao telejornal da emissora. O programa apresentou uma reportagem sobre a queda no registro dos eleitores entre 16 e 18 anos e me pediu para comentar o fato. Estaria em curso uma perda do interesse da juventude pela política? Argumentei que não, as pesquisas que o Ibase tem realizado mostram a vontade dos jovens em participar dos assuntos públicos, mas também indicam que eles se sentem desconfiados e distantes das instituições tradicionais, como os partidos.

De que maneira então se dá essa participação?, me perguntou a apresentadora. Respondi que os jovens têm inventado novos modos de se envolver com questões políticas, como grupos culturais - chamei a atenção para a explosão criativa que é o hip hop brasileiro - e um uso intenso e inovador das tecnologias da informação.

Num certo sentido, a sociedade brasileira mudou mais rapidamente do que os partidos e esse fenômeno é ainda mais forte com relação à juventude. Os jovens de hoje são mais escolarizados, têm mais acesso à informação e uma mente mais aberta e questionadora. Os líderes políticos tradicionais simplesmente não conseguiram acompanhar essas transformações e o resultado é uma lacuna grande entre o discurso dos candidatos e as expectativas e valores juvenis. Aliás, em artigo anterior havia defendido a idéia em uma perspectiva mais ampla, falando da América do Sul e sem me referir a uma faixa etária específica.

A entrevista fechou com um tema que me é particularmente caro, o das políticas públicas. Me perguntaram se eu avaliava que o Brasil não tinha ações governamentais nessa área. Disse que tinha, e que o campo passa por um momento importante de fortalecimento e consolidação. A questão é que se demorou muito para iniciar o processo - o órgão nacional de juventude foi criado apenas em 2005, enquanto nos demais países sul-americanos instituições semelhantes existem há 15 ou 20 anos. De modo que o país está correndo para preencher essa lacuna e responder aos anseios dos cerca de 50 milhões de jovens que formam nossa população.

Para quem se interessa pelo tema, a pesquisa na qual trabalho atualmente agora tem um site próprio: Juventudes Sul-Americanas, atualizado com freqüência com notícias, entrevistas e com muitos artigos e pesquisas disponíveis para download. Desfrutem!

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Democracia, Lá e Cá



Hoje a população de Angola vota pela primeira vez desde 1992. Os angolanos escolherão seus representantes parlamentares e se tudo correr bem esse será o primeiro passo até as eleições presidenciais, em futuro próximo. O cenário ainda é bastante impreciso, porque as últimas disputas eleitorais na África (Quênia, Zimbábue) terminaram com governos corruptos fraudando votos e fechando acordos precários com a oposição após semanas de violência. A situação em Angola é particularmente delicada porque a apertada vitória do governo em 1992 levou a mais dez anos de guerra civil.

Pelo trabalho de cooperação internacional que fiz com Angola, minha expectativa é que o partido no poder (MPLA) irá ganhar esta eleição, mas acredito que pode haver avanços consideáveis da oposição no interior, fora de Luanda. Mas se você quiser acompanhar o cotidiano de lá, recomendo visitas à Casa de Luanda, uma das moradoras é amiga querida e profunda conhecedora dos assuntos africanos.




A democracia não vai bem no continente. O mapa que abre o post foi elaborado pela ONG Freedom House e avalia as liberdades civis e políticas existentes em cada país. Verde indica democracias, vermelho, ditaduras. A outra cor (Que diabos ela é? Bege?) significa "parcialmente livre". Angola está entre os regimes mais autoritários da África, as poucas exceções democráticas concentradas na porção austral e em algumas nações da costa ocidental do continente.



Em nossa região a situação é melhor, mas persistem focos de tensão na América Central, nos Andes, na Bolívia e no Paraguai. Deste último país chega denúncia do recém-empossado presidente Fernando Lugo, acusando seu antecessor, Nicanor Duarte, e seu rival derrotado, general Lino Oviedo, de conspirar para dar um golpe. A trama teria sido denunciada por um general convidado a participar do plano. Os acusados negam e a reação internacional foi forte e imediata, assim como o vigor da população local, que foi para a frente do parlamento (foto acima), defender o presidente. Não há mais espaço para esse tipo de aventura na região.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Vinte Anos de um Clássico


Ocasionalmente meus alunos no preparatório para o Itamaraty me perguntam “Que livro você recomenda para quem nunca leu nada sobre política internacional, mas quer se dedicar ao tema?”. Minha recomendação, invariavelmente, é “Ascensão e Queda das Grandes Potências”, do historiador inglês Paul Kennedy. O livro completa 20 anos nesta semana e há uma certa festa na comunidade acadêmica para celebrar a data.

Kennedy examina a construção e declínio de diversos impérios, do Renascimento aos dias atuais. Sua tese central é que a expansão territorial leva as grandes potências a assumir um número excessivo de compromissos militares, que acabam por causar problemas à economia e impor um custo humano e político insustentável. O livro foi escrito em meio à ressurgência da Guerra Fria durante a presidência de Reagan, e afirmava que os Estados Unidos estavam no rumo da decadência. Ironias da história: é claro que não estavam, mas a tese de Kennedy se aplica à perfeição para explicar o colapso do bloco soviético, que ocorreu meses após a publicação da obra.

Em suma, Kennedy errou na análise de conjuntura, mas forneceu uma ferramenta importante para o exame de diversas situações de conflitos, para não mencionar o prazer da leitura de suas narrativas históricas. Embora o autor já fosse um acadêmico veterano, seu livro o catapultou para o status de celebridade global, e ele se tornou um debatedor importante nas controvérsias sobre política externa dos EUA. De seu posto em Yale, ressaltou a importância de se pensar em termos de “grande estratégia”, olhando além das dificuldades e problemas cotidianos.

Nos últimos 20 anos Kennedy continou ativo, escreveu um bom livro sobre tendências globais contemporâneas (“Preparando para o Século XXI”) e uma história da ONU, que não li. Ele agora trabalha num estudo sobre o escritor Rudyard Kipling, que a maioria talvez considere como um defensor instransigente do imperialismo, por conta de seu poema "O Fardo do Homem Branco", um apelo aos Estados Unidos para seguirem os passos dos britânicos. Pessoalmente, acho que a verdade é mais complexa. Kipling perdeu o filho na Primeira Guerra Mundial e se tornou bem mais amargo com relação ao militarismo e às aventuras coloniais, ambigüidade presente em algumas de suas melhores obras, como o conto "O Homem que queria ser rei".

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Dez Anos de Política Externa



Ontem foi meu último dia de breves duas semanas de férias. Aproveitei o tempo nos preparativos da mudança para Brasília, mas também para me atualizar em bons eventos acadêmicos que ocorreram no Rio de Janeiro nesse período. A chave de ouro foi o seminário de comemoração aos dez anos de atividades do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. O encontro reuniu no Itamaraty o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e diversos diplomatas que conduziram a política externa ao longo das últimas duas décadas, como os chanceleres Francisco Rezek, Luiz Felipe Lampreia Celso Amorim (além do próprio FHC, que exerceu o cargo no governo Itamar Franco), embaixadores como Samuel Pinheiro Guimarães, Marcos Azambuja, Sebastião do Rego Barros, Roberto Abdenur, José Botafogo Gonçalves e o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia.

A síntese das apresentações é que o Brasil está num momento de transição: deixou de ser apenas uma potência regional e caminha para um status global, que ainda não alcançou. Na ausência de inimigos externos, os principais obstáculos no percurso são as fragilidades internas do país e sua relação por vezes tensa com os vizinhos sul-americanos. Houve uma notável convergência entre pessoas ligadas ao PSDB e PT, eu diria que o consenso abrange uns 80% ou 90% da discussão, que se deu de modo muito cordial, bastante diferente da polarização estúpida que tem dominado o debate sobre política externa no Brasil, em particular no que toca à América do Sul.

Os pontos altos do evento foram as palestras do ex-presidente Fernando Henrique e da minha mentora acadêmica, professora Maria Regina Soares de Lima. A mestra ressaltou que as conquistas econômicas brasileiras - a estabilidade macroeconômica e a expansão internacional das empresas do país - destacaram o Brasil dos vizinhos de continente, o que pode se tornar um foco de tensões. Ao mesmo tempo, esses são exatamente os fatores que impusionam o país para posições de liderança no âmbito internacional. Regina apontou a dificuldade de que a opinião pública brasileira rompa o provincianismo intelectual nacional, típico de nações de tamanho continental, e reflita sobre o papel brasileiro no mundo.

A conferência de Fernando Henrique seguiu linha semelhante - muito parecida ao seu excelente artigo "Um Mundo Supreendente", que abre o livro "Brasil Globalizado", coletânea organizada por Fábio Giambiaggi e Octavio de Barros. O ex-presidente se concentrou na análise da ascensão da China e da Índia e das oportunidades criadas para o país, no sentido de fortalecimento do multilateralismo. O mais interessante foi seu exame do que se passa com os Estados Unidos. Nas palavras de FHC: "O império americano está em declínio, mas permancerá sua influência de soft power", pela via das universidades, do sistema de inovação empresarial, da força institucional.

Muitos diplomatas chamaram a atenção para que o Brasil atual superou deficiências históricas que muito prejudicaram o país no passado. Não apenas a inflação, mas também a dependência das importações de petróleo, o peso da dívida externa e o mau desempenho das exportações.

Algo que também me espantou foi como a comunidade brasileira de política externa está em crescimento. A quantidade de pesquisadores e estudantes do tema tem se multiplicado. Foi fantástico ver a multidão que se encontrou ontem no Itamaraty, um contraste marcante dos pequenos grupos que se reuniam no início do CEBRI. O perfil dos participantes também mudou: mais jovens, claro, e também uma presença feminina muito maior do que o clube do bolinha da diplomacia da velha guarda.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

De Steve Biko a Barack Obama



No fim de semana assisti a “Um Grito de Liberdade”, cinebiografia do líder do movimento da consciência negra na África do Sul do apartheid, Steve Biko. É uma produção de 20 anos atrás, que comprei um pouco por acaso numa oferta. A história é tão fascinante que nem a direção melodramática de Richard Attenboroughs (o mesmo de “Gandhi”) consegue estragá-la.

Biko é interpretado por Denzel Washington. O filme retrata o personagem como sendo alguém que continua a luta de Mandela contra o regime racista, o que é verdade, mas o roteiro omite alguns dos pontos mais interessantes da história. O Congresso Nacional Africano tinha como base a Carta da Liberdade, de 1954, um documento escrito na melhor tradição do liberalismo, de direitos iguais para todos. Biko percebeu que isso não era suficiente e advogava a valorização das culturas africanas e da auto-estima negra, no contexto explosivo das rebeliões juvenis em Soweto. Black is beautiful, num de seus lemas mais famosos. Era um desvio bastante significativo com relação às diretrizes do Congresso e respondeu aos anseios de uma geração de militantes mais jovens e radicalizados, bem diferentes da liderança de elite do início da mobilização contra o apartheid.



Biko foi um pioneiro do que hoje em dia se chama de “política de identidade” mas ão faltou quem o acusasse de responder ao apartheid com sua própria versão do racismo. Sua contraparte no filme é o jornalista Donald Woods, muito bem interpretado por Kevin Kline como o arquétipo do reformista progressista e bem-intencionado, mas encastelado em suas ficções juridicas. O melhor do enredo é a descoberta de Woods de como vive numa bolha de privilégios e ilusões. O pior da trama é que Biko morre na metade do filme e a narrativa dá mais destaque aos dilemas do jornalista do que à vida e à luta do ativista.

Quando “Um Grito de Liberdade” foi lançado, Barack Obama era um jovem ativista comunitário em Chicago, e devido ao seu enorme interesse pelo tema, é muito provável que tenha visto o filme no cinema. Vinte anos é uma piscadela em termos históricos e me pergunto o que aquele rapaz inquieto tenha pensado durante a sessão. Difícil acreditar que mesmo em seus sonhos mais otimistas ele imaginaria sua própria posição atual, e uma África do Sul livre do apartheid, e que, apesar dos muitos problemas, evitou os abismos das guerras étnicas de outros países do continente.



Comentando minhas impressões do filme com amigos negros, me dei conta de que algo também mudou no Brasil. As pessoas com quem conversei eram profissionais de classe média alta, no serviço público e na iniciativa privada, muitos com pós-graduação. Meu convívio com eles representa uma experiência bastante diferente daquela que viveu a geração dos meus pais. E olhando para o Estado, vejo negros como ministros e no Supremo Tribunal Federal. A mudança é mais lenta do que eu gostaria, mas ela existe e está em avanço.