segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A Quarta Espada



A guerra entre o Sendero Luminoso e o Estado peruano durou, em seu auge, 12 anos e matou cerca de 70 mil pessoas. Mais do que assassinaram, em conjunto, as ditaduras da Argentina, Bolívia, Brasil e Chile. O Sendero era de personalismo extremo, de culto a seu fundado e líder, Abimael Guzmán. Que tipo de homem ele é? O jornalista peruano Santiago Roncagliolo avança bastante em responder à indagação em sua reportagem-biografia, “A Quarta Espada”.

Roncagliolo escreveu o livro na Espanha, depois dos atentados da Al-Qaeda em Madri. Filho de intelectuais, passara a infância acompanhando os pais em exílio mexicano, a família voltou ao Peru com a redemocratização da década de 1980, o momento em que o Sendero despontou. De certa forma, “A Quarta Espada” é o ajuste de contas do escritor com a pátria que pouco conhece e que claramente lhe causa espanto e repulsa.

A biografia de Guzmán mostra história de abandonos, fragilidade emocional e social. Bastardo de um comerciante próspero, foi abandonado pela mãe, mas acolhido pela madrasta. Cresceu em Arequipa, cidade provinciana com expressiva vida cultural. Tímido e introspectivo, Guzmán tornou-se professor universitário como quase todos os irmãos. Mas não conseguiu se firmar na carreira, devido a intrigas acadêmicas – seu mentor deixou a cidade após brigar com colegas. Guzmán passou também por um trauma amoroso pouco claro, um namoro interrompido por pressão da família da moça, que pode ter incluído uma filha natimorta, ou dada em adoção sem seu consentimento. Ele não teve outros filhos.

Jovens de classe média com muita educação formal e poucas oportunidades sociais, com raízes frágeis, são bons candidatos a revolucionários. Guzmán encontrou seu lugar ao ir lecionar na recém-recriada Universidade de San Cristobal, em Ayacucho, uma das cidades mais pobres do Peru. As salas de aula eram o único lugar em que os jovens filhos de camponeses podiam conviver com aqueles oriundos das classes médias e da elite, no ambiente carregado da década de 60. Guzmán mergulhou no universo da extrema-esquerda, que então era formada por cerca de 70 micro-grupos. Fundou o seu próprio, o Partido Comunista Peruano pelo Caminho Luminoso de Mariátegui, em 1969. Começou com 12 membros.



Passou os dez anos seguintes em brigas fratricidas, afastando rivais e consolidando sua influência no movimento estudantil e camponês de Ayacucho. À época, parecia apenas mais um radical, que considerava a Revolução Cubana de direita e criticava a URSS e a China de Deng Xiaoping. Roncagliolo observa que em seus textos de doutrinação “o valor quase místico atribuido à ideologia faz lembrar a Força de Luke Skywalker, uma ferramenta espiritual e transcedente que dá poder ilimitado ao seu usuário.” Há controvérsias sobre a capacidade intelectual de Guzmán, alguns observadores lhe consideram brilhante, mas a maioria afirma que era mediano, dado a repetir clichês.

Ninguém esperava que o Sendero fosse à ação, mas isso aconteceu, ironicamente quando o Peru voltou a ser uma democracia. O grupo começou a atacar alvos governamentais e pessoas ricas em Ayacucho Sempre estranhei o timing, mas Roncagliolo explica a decisão citando o próprio Guzmán:

“Em 1980 o governo tinha que ser substituído através de eleições, seriam necessários um ano e meio ou dois anos para o novo governo poder armar o manejo do Estado. Os militares estavam saindo depois de 12 anos e não poderiam assumir facilmente uma luta imediata contra nós, nem poderiam de imediato tomar o timão do Estado, porque estavam desgastados politicamente e desprestigiados.”

O livro conta rapidamente os principais lances da guerra – se você quiser os detalhes, recomendo a obra do jornalista peruano Gustavo Gorriti – tais como a declaração do Estado de emergência em Ayacucho, a intervenção das Forças Armadas em 1982, os massacres mais chocantes, como o assasssinato de jornalistas no povoado de Uchuruccay (os camponeses nunca tinham visto câmeras e microfones e as tomaram por armas, confundindo os repórteres com membros do Sendero), os massacres nas prisões e banho de sangue que matou sobretudo pessoas pobres, da região rural e indígena nos Andes.

Um coronel brasileiro que foi adido militar em Lima me disse que a opinião pública só levou o Sendero a sério quando a guerra chegou à capital. Roncagliolo narra os atentados em Lima, como a inflitração do Sendero nas favelas, o assassinato de líderes comunitários que se opunham ao grupo, os apagões promovidos ao dinamitar torres de transmissão e o carro-bomba na principal rua do bairro de elite, Miraflores, “o momento em que os limenhos, em particular as classes médias e altas, sentíamos que também podíamos morrer”

Guzmán foi preso sem que fosse disparado um único tiro, em excepcional trabalho investigativo da unidade anti-terrorismo da polícia peruana. Na prisão, entrou em polêmico acordo com a ditadura de Fujimori, negociando com seu braço direito, o sombrio Montesinos, que hoje divide o mesmo presídio com Guzmán. A maior parte do Sendero foi desmantelada, seus líderes condenados à prisão perpétua, embora militantes remanescentes ainda atuem no vale do Apurímac – na visão cínica de alguns entrevistados no livro, uma reserva que os políticos podem usar em caso de emergência, para unir o país em torno de um inimigo.

Guzmán deu apenas duas entrevistas em toda sua vida, e não falou com Roncagliolo, mas o autor conversou com muitos líderes do Sendero, inclusive a esposa de Guzmán. Os presos viraram um trama semi-esquecido, “perguntam o que se pensa deles na Espanha, com a esperança de que alguém pense neles em algum lugar.”

2 comentários:

brunomlopes disse...

Grande Maurício,

nessas minhas andanças pela América do Sul me surpreendi com as diferenças entre Peru e Colômbia, e como os dois países lidam com o tráfico de drogas.

No Peru fiquei 3 semanas, e vi que a droga rola solta. É muito barata e fácil de ser obtida. Em Cuzco um taxista quase implorou para eu comprar um grama de cocaína. Em alguns “barrios bravos” de Lima fui advertido a não passear, e a pobreza não é muito diferente do que vemos no Brasil. Ainda assim, me senti seguro, e nas agências bancárias não via qualquer proteção a roubos, como os milhares de seguranças e portas blindadas que temos no Brasil.

Na Colômbia, passei apenas um dia, esperando a conexão do vôo que me traria ao Brasil, vindo da Costa Rica. Paguei para um taxista rodar comigo pela capital, e me impressionei com a quantidade de soldados do exército em pontos turísticos e de concentração popular. A guerra pega fogo nas selvas, mas em Bogotá os reflexos são claros.

Maurício Santoro disse...

Salve, meu caro.

Pois é, a Colômbia realmente leva a sério sua segurança e o Exército aumentou muito nos últimos anos, mais do que dobrou sob Uribe.

Mas o que mais me impressiona é o Chile, onde o aparato de segurança não é tão ostensivo, mas onde de fato se sente muita tranqüilidade.

abraços