terça-feira, 19 de agosto de 2008

Fora de Jogo



Um pouco mais sobre o futebol como maneira de driblar os obstáculos à participação na política. Já falei da China, agora é a vez do Irã.

Entre as vantagens de ser professor está o convívio com alunos inteligentes, que muito me ensinam. Tem sido constante nas turmas de relações internacionais a demanda de estudantes que querem discutir a situação das mulheres nos países muçulmanos. Uma das melhores monografias apresentadas neste ano tratou justamente de como o cinema iraniano aborda os direitos femininos. Minha aluna me presenteou com os DVDs das produções que analisou, como Persépolis e Fora de Jogo.

(Clique no link para ver o trailer de Fora de Jogo).

O segundo filme é uma ficção bem-humorada sobre um grupo de mulheres que tentam entrar num jogo importante para a seleção iraniana de futebol, as eliminatórias para a Copa do Mundo. Como a presença feminina é proibida nos estádios, elas se disfarçam de homens, mas são capturadas pela polícia e mantidas em detenção, fora de campo, enquanto ocorre a partida. Quase toda a trama se desenrola no cercadinho onde estão confinadas, nas conversas que mantêm entre si e com os guardas.

O filme é inspirado em fatos dolorosamente reais. Em 1997, o Irã voltou à Copa, pela primeira vez após a Revolução Islâmica. As ruas de Teerã foram tomadas por multidões que celebraram a conquista e em algumas áreas, em particular nas de classe média e alta, mulheres também comemoraram, com a cabeça descoberta, sem véus. Para horror total dos clérigos, a polícia se juntou à festa, em vez de reprimi-la. A revolta continuou dias depois, quando um grupo de mulheres rompeu as barreiras policiais e entrou à força no estádio nacional (ironicamente batizado de “Liberdade”), onde a seleção era recebida em glória. Temerosas de um conflito, as autoridades cederam, mas mantiveram as manifestantes numa área separada.

O futebol foi muito promovido no Irã do velho xá Reza Pahlevi, como símbolo de modernidade e adaptação do país às tradições européias, e até como um instrumento de socialização para os migrantes rurais que se mudavam para Teerã e outras grandes cidades, à medida que progredia a industrialização. A paixão pelo esporte permaneceu após a queda da monarquia, ainda que seu caráter cada vez mais globalizado cause embaraços aos aiatolás. Muitas estrelas da seleção jogaram em times internacionais, na Europa e na Ásia e o regime permitiu até a um estrangeiro treinar a equipe iraniana. Claro que foi um brasileiro: Valdeir Vieira, que comandou a campanha vitoriosa que culminou na participação na Copa.

Do outro lado da fronteira, também coube a um brasileiro, Jorvan Vieira, a a missão quase impossível de treinar a seleção iraquiana de futebol, no que sobrou do país após a guerra de 2003. O resultado foi uma conquista espetacular, a vitória na Copa da Ásia, superando obstáculos sérios – por exemplo, os sunitas não passavam a bola para os xiitas – e dando àquela sofrida nação um de seus poucos momentos de felicidade e união em anos recentes. Infelizmente, a equipe foi desmantelada pouco depois e não disputará o mundial de 2010.

As meninas de Fora de Jogo encontraram no futebol uma maneira de expressar seu desejo de ser aceitas como parte integral de sua sociedade, de ter direito a se divertir ao lado de seus amigos, namorados, parentes, maridos e filhos. Os membros da seleção do Iraque descobriram no esporte uma celebração que lançou pontes sobre anos de lutas fratricidas e lhes deu novo propósito comum. O futebol é tudo isso, uma maneira de passar uma tarde divertida e de aproveitar o que vida tem de bom. Também pode ser um modo de manipular paixões populares para fins espúrios, como sabem demagogos de sobra na Argentina, Brasil e Itália, ou mesmo de canalizar ódios raciais, sociais e religiosos na forma de torcidas organizadas.

Em 2010, a Copa será na África do Sul, democracia multiracial que simboliza a esperança africana em superar os problemas de sua trágica história colonial. Os jogos acontecerão num momento difícil para o país, em que ataques xenófobos contra imigrantes de outras nações africanas deixaram muitos mortos. Vai ser um mundial e tanto.

4 comentários:

SAM disse...

A situação de DH no Irã é muito complexa, ao ponto de que nem as organizações de DH, muitas vezes, podem dizer determinadas coisas.

Por isso mesmo, tenho notado que, de fato, os iranianos têm utilizado muitas coisas, como o humor, para defender os seus direitos. Acredito que a massa crítica iraniana seja semelhante a uma determinada massa social de outros pontos do mundo, aonde a arte, os multimídia, a moda e os jornais internacionais fazem-se pontos centrais de intervencionismo social. E, mais interessante, a maioria não pertence aos grupos reprimidos. Os não reprimidos são dos que mais intervém!

Aliás, essa é a diferença. Marjane Satrapi é uma emigrante iraniana, enquanto que os demais intervencionistas tendem a ser reais residentes no Irã.

Acho que é algo a ter em conta nas análises. (sobre Panahi e Rasti não sei nada, por isso não adentrarei mais neste comentário).

Um abraço Maurício.

Anônimo disse...

Olá...sou estudante de relações internacionais e no momento faço minha monografia sobre pena de morte e direitos humanos em 4 países: EUA, China, África do Sul e Irã.

DH é um assunto muito completo e é uma pena que em alguns países ele seja secundário à religião.

Gostei do site. Voltarei mais vezes.
=)

Maurício Santoro disse...

Salve, caros.

O conflito entre Irã e EUA por conta do programa nuclear tem levado outros temas a ficarem em segundo ou terceiro plano. Um deles é a situação dos DHs no país e houve um recuo muito grande com relação às reformas que haviam sido iniciadas de maneira algo
tímida pelo governo anterior...

Enfim, continuo a discussão sobre DH, agora por Samantha Power. É o tema do post de hoje.

abraços

Anônimo disse...

Querido Professor Maurício!

Estou passando por aqui para trazer mais novidades sobre o cinema iraniano, mulheres e futebol.

E falar das minhas pretensões de estudar cada vez mais o Irã..hehehe com um viés mais construtivos e feminista!
Saudades das suas aulas e da sua erudição. Sempre que posso leio seu blog que é maravilhoso.
beijos e tudo de bom

Andrea

Aqui vai o filme:

Pelada com Véu / Football Undercover
(Ayat Najafi e David Assman, 2008, Alemanha/Irã, 86')

Este foi o grande vencedor do prêmio Teddy (dedicado a filmes de temática LGBT) de melhor documentário e também do Teddy de público no festival de Berlim 2008; conquistou ainda o Freedom Award no L.A. Outfest. Marlene Assmann (irmã do diretor), jogadora de um time de futebol de Berlim, o BSV Aldersimspor, fica sabendo a respeito do time iraniano de futebol feminino, que até o momento nunca teve a oportunidade de jogar contra qualquer outro time. Ela convence sua equipe local, que tem jogadoras de origens alemã, turca, grega, coreana e tunisiana, a tentar mudar isso. Marlene começa a procurar por apoiadores para sua idéia. Como ela não os encontra na Alemanha, viaja até o Teerã e inicia uma fascinante e difícil peregrinação pelas instituições iranianas, de burocracia kafkiana e preceitos islâmicos sexistas.

Onde Assistir:
ESPAÇO UNIBANCO DE CINEMA SALA 1: 19/11 (quarta-feira) - 20h50