segunda-feira, 28 de julho de 2008

XXY



Difícil escrever sobre “XXY” sem trair a delicada beleza deste filme. Começo pelo fundamental: uma obra assim só é possível pela reunião de uma diretora talentosa (em seu primeiro trabalho!) como Lucía Puenzo com o contexto da maturidade artística alcançada pelo cinema argentino contemporâneo. Lamento dizer que no Brasil ou nos EUA, provavelmente descambaria para a escatologia, perdendo o fino equilíbrio que é o encanto da trama.

O filme conta a história de Alex (desempenho impressionante de Inés Efron), uma adolescente que vive com os pais num pequeno vilarejo de pescadores, no Uruguai. A família deixou Buenos Aires “para fugir de certos tipos de pessoa” e vive de modo quase isolado, com pouco contato social. Sabe-se que Alex tem algum tipo de difunção, de caráter sexual, que a faz ser vista como uma espécie exótica no povoado, motivo de risos e escárnio, mas também de fascínio. As tensões latentes explodem quando um casal de amigos e seu filho, também adolescente, vão passar alguns dias em visita. O marido é cirurgião plástico, tem prática em consertar “aberrações”, e observa Alex com olhar cliníco. Mas seu filho, um rapaz tímido e inseguro, se sente atraído pela moça.



O desenrolar desse enredo é uma pequena e bela fábula sobre identidade, diferença e os papéis sexuais que somos forçados a desempenhar em sociedade, destacando os momentos cruciais e dolorosos do despertar dos desejos na puberdade. O que é normalidade, e o que é castração? Qual o preço das escolhas que temos que fazer? E se – como se questiona Alex, em determinado momento – não há o que escolher?

Entre os pólos opostos que se debate Alex, estão o cirurgião, ávido por usar seus instrumentos e normalizar o que escapa à sua definição de perfeição, e o pai da moça, um biólogo interpretado por Ricardo Darín que tem um grande respeito pela natureza, mesmo por aquilo que não consegue compreender, e enxerga a beleza onde outros vêem apenas desvio.

Para além da temática sexual, “XXY” é uma bonita história sobre as relações entre pais e filhos, com poucos diálogos – muito do que é mais importante no filme se diz através de ações, gestos, imagens. Um trabalho primoroso, com a curiosidade de que a cineasta Lucía Puenzo é filha do diretor Luis Puenzo, de “A História Oficial”. Tal como sua heroína, Lucía afirmou seu direito a ser diferente e única, realizando uma obra muito particular e em tudo diferente do cinema político de seu pai.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei imensamente deste filme.

O cinema argentino conta histórias contemporâneas de um jeito natural, sem afetações, coisa que a maioria dos autores brasileiros ainda não consegue.

Maurício Santoro disse...

Caro,

Exato. É um cinema que fala do cotidiano, das coisas simples, sem apelar para crimes, tragédias, violência.

Curioso, porque o Brasil já teve senão um cinema, pelo menos uma poesia capaz disso, a grande poesia de Vinicius, Bandeira, Drummond, das crônicas de Rubem Braga... Onde foi que perdemos nossa capacidade de extrair beleza da simplicidade?

Abraços