quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A Astúcia das Coisas Passadas



Estou no Rio de Janeiro desde o dia 20. Vim passar as festas de fim de ano na minha cidade natal, rever família e amigos, e organizar minha mudança definitiva para Brasília. Até agora eu havia vivido na capital em um hotel, com duas malas e roupas para um mês e meio. No próximo dia 2 meu apartamento carioca entra num caminhão e segue para o Planalto Central, para o imóvel que alugo na Asa Sul.

Estas breves duas semanas no Rio estão febris em atividades, há mil pequenos detalhes para resolver, muitas pessoas para encontrar e uma quantidade inacreditável de sacolas com papéis velhos para jogar fora. Inevitável pensar nos belos versos de Herbert Vianna que falam de "cartas e fotografias, gente que foi embora". Como o narrador da canção "eu vi o meu passado passar por mim" e concluí que sem tanto fardo para carregar "a casa fica bem melhor assim".

Foi uma surpresa positiva a quantidade de alunos que me procuraram neste fim de ano, fosse para pedir conselhos, cartas de recomendação, ou simplesmente deixar um abraço. Acho que não foi um professor muito presente em 2008, porque a cabeça parecia estar sempre em outro lugar: na tese de doutorado que precisava ser completada e defendida, nas atividades do Conselho Nacional de Juventude, no concurso para gestor de políticas públicas e finalmente na mudança para Brasília.

Diversos estudantes e amigos comentaram comigo que 2008 deve ter sido o ano mais feliz da minha vida, e só pude rir diante da afirmativa. Foi, de fato, um período de conquistas e mudanças, muito bem-vindas e desejadas. Mas olhando em retrospectiva - neste dia em que elas são inevitáveis - tudo parece ter sido mais fácil, calmo e planejado do que realmente foi. Somem as dúvidas, as noites de sono inquieto, as perguntas sobre se o rumo da vida vai bem. Me vem à mente à bela expressão de Guimarães Rosa sobre "a astúcia das coisas passadas":

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.

Naturalmente, 2009 será um perído repleto de desafios, e sinto uma disposição muito boa em vivê-los, de me atirar de cabeça nesta onda de renovação que vem pela frente. Que tenhamos, todos, um feliz ano novo.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Gomorra



Não é todo dia que chega às telas um filme sobre crime organizado tão poderoso quanto “Gomorra”. Baseado no livro do jornalista Roberto Saviano, é uma dissecação do funcionamento da máfia de Nápoles, a Camorra. Daí o título da obra, além dos óbvios ecos bíblicos para uma cidade dominada pelo pecado.

O filme está estruturado como uma coleção de cinco histórias contadas simultaneamente, o que às vezes pode confundir o espectador. Duas dizem respeito a gangsters de baixo escalão – um adolescente dando os primeiros passos na vida criminosa e um homem de meia idade que executa serviços burocráticos para a Camorra - tentando se (re)adaptar às circunstâncias de uma guerra entre grupos mafiosos rivais. Em outra subtrama, dois jovens pé-rapados resolvem tentar grandes golpes, sempre atrapalhados, para se tornarem bandidos respeitados. Roubam drogas de uma quadrilha de imigrantes e furtam armas da Camorra, mas são marcados de morte pelos chefões. Essas são as narrativas mais tradicionais no filme.

As duas mais interessantes – e que a meu ver deveriam ter ganhado mais destaque na produção – falam das relações da máfia com a economia global. Numa delas, um alfaiate que trabalha para uma confecção semi-falida é cooptado por uma empresa têxtil chinesa, ilegal, para treinar seus operários a entrar no mundo da alta-costura. Tratado como um herói, e pago regiamente, ele logo se supreenderá com o fantástico alcance de seus produtos, mas também com a reação furiosa que seu sucesso desperta. Na outra, um elegante executivo faz a ponte entre a Camorra e grandes empresas internacionais, que querem despejar seu lixo tóxico no sul da Itália. Mas seu jovem assistente começa a ter problemas de consciência.



A maioria dos filmes sobre a máfia apresenta criminosos que se vestem como reis de moda e se comportam como CEOs de grandes corporações, às vezes quase numa paródia do mundo empresarial. Em “Gomorra”, tudo é mais sujo, pobre, feio, mesquinho, como no conjunto habitacional napolitano que é cenário para duas das histórias. Os chefões são tão estropiados quanto seus capangas. Do ponto de vista lingüístico, isso é simbolizado pelo uso do dialeto napolitano, no qual a maior parte do filme é narrado. Só os personagens conectados à economia global falam italiano, e ironicamente isso pode abarcar dos imigrantes chineses ilegais ao executivo que lida com lixo tóxico – e que a dado momento diz a seu assistente melhor frase de “Gomorra”: “Pessoas como eu e você botamos esta merda de país na Europa”.

A publicidade do filme no Brasil vem tentando vendê-lo como “a Cidade de Deus italiana”. Típica bobagem de marketing fácil. Em muitos aspectos, “Gomorra” é o oposto da famosa produção brasileira, pois não glamouriza a violência e nem mostra os bandidos como alienígenas sem relação com o resto da sociedade. As mazelas da Itália estão expostas no filme, o eterno drama de seu Estado incompleto e da fragilíssima integração nacional, agora piorados na medida em que o território do país se torna passagem para rotas do crime organizado internacional. Senti falta apenas de histórias que mostrassem a relação da Camorra com a política e a polícia.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O Segundo Mundo



Se você se interessa por política internacional, anote o nome de Parag Khanna. Este acadêmico indiano de apenas 31 anos ainda está completando o doutorado na London School of Economics, mas já tem uma brilhante carreira que inclui empregos no Council on Foreign Relations, Brookings Institute, Fórum Econômico Mundial e assessorias de alto nível para as Forças Especiais do Exército dos EUA no Iraque e Afeganistão e para o presidente eleito Barack Obama. Seu livro “O Segundo Mundo – impérios e influência na nova ordem global” é um impressionante panorama das crises mundiais neste início de século, com destaque para a situação da Ásia.

Khanna analisa o mundo dividido entre três grandes pólos de influência: Estados Unidos, União Européia e China. O que determinará o sucesso de cada uma dessas locomotivas é sua influência sobre os estados periféricos globais, fontes de mercados consumidores, matérias-primas, locais para investimentos e para a internacionalização das cadeias produtivas. Ele deixa de lado os países mais pobres (basicamente, África subsaariana, América Central e Caribe, e Ásia meridional) e concentra seu livro no que chama de “segundo mundo”. Não se trata agora do antigo bloco socialista, mas de uma série de nações emergentes que combinam elementos dos Estados ricos com características de pobreza, conflito e instabilidade soc.ial. Os que ele destaca como mais promissores são Brasil, Turquia, Cazaquistão, Irã, Malásia e as “cidades globais” de Cingapura e Dubai.

Seu livro é o que os analistas diplomáticos classificam de tour d´horizon, um apanhado da situação geral de cada região. É um tipo de obra comum entre veteranos como Henry Kissinger (Does America Needs a Foreign Policy?) e Zbigniew Brzezinsky (The Grand Chessboard). Khanna visitou um número surpreendente de países, mas é claro que seus conhecimentos, embora vastos, são limitados. A seção sobre América Latina é bastante superficial e basicamente repete o que qualquer um pode ler na Economist ou no Financial Times. O único país africano examinado em detalhes é o Egito, e mesmo assim muito mais pela ótica de seu envolvimento dos conflitos do Oriente Médio.



Contudo, as seções sobre Ásia Central são espetaculares. Khanna narra de modo magistral os desdobramentos políticos na antiga Rota da Seda, que basicamente cobre as antigas repúblicas soviéticas que separam a Rússia da China, mostrando como esses novos e frágeis países vem manobrando no espaço político entre essas potência e os Estados Unidos. É igualmente brilhante sua análise dos jogos diplomáticos entre os pequenos Estados reformistas do Golfo Pérsico (Catar, Bahrein, Emirados Árabes Unidos) e a Arábia Saudita, com esses micro-países representando uma bem-sucedida combinação entre o Islã e a economia global.

Khanna não escreve muito sobre a China propriamente dita, mas discorre com lucidez sobre a política externa do país no Sudeste Asiático, iluminando as relações de Pequim com os vizinhos prósperos (Vietnã, Malásia) e turbulentos (Myanmar, Indonésia, Tailândia) além de discorrer de modo claro sobre os desafios chineses em suas regiões de conflito étnico e religioso, com a ameaça latente de separatismo (Tibete e Xinjiang). Material de alta qualidade, difícil de encontrar em português.

Curiosamente, Khanna é muito descrente de sua Índia natal, que analisa brevemente como um Estado de pouco potencial, devido às extensas zonas de miséria e à burocracia incompetente. Ele se mostra igualmente crítico de seu país de adoção, os EUA, com comentários bastante ácidos sobre as atuais dificuldades políticas e econômicas. Dificil escapar da impressão de que é fascinado pelo dinamismo do futuro em construção que encontrou nas nações emergentes que visitou com tanto interesse.

domingo, 21 de dezembro de 2008

A Estratégia de Defesa



Na semana passada foi divulgada a Estratégia Nacional de Defesa, que estabelece as novas diretrizes dessa política pública no Brasil. O documento de 64 páginas apresenta inovações interessantes, com destaque para: 1) Reorganização territorial das Forças Armadas (ênfase na Amazônia, Atlântico Sul e Centro-Oeste); 2) Aproximação entre militares e sociedade civil e 3) Reforço dos vínculos entre defesa e desenvolvimento.

Com relação ao primeiro ponto, há a decisão de que a Marinha construirá uma grande base naval na foz do Amazonas – na prática, isto deve significar a cidade de Belém - e que as demais forças irão deslocar progressivamente suas unidades para o interior do país. A diretriz é acompanhada pelo destaque à necessidade de mais flexibilidade e mobilização. Por exemplo, o Exército será reorganizado com base em brigadas com elevada capacidade de deslocamento rápido. O paradigma é a Brigada de Operações Especiais, que a Estratégia cita como referência em termos de motivação e qualificação de tropa.

A distância entre as elites civis e militar tem sido talvez o principal obstáculo à formulação da política de defesa no período democrático e as sugestões feitas na Estratégia concentram-se em três propostas para reduzir o abismo. Uma é criar carreira civil no Ministério da Defesa, visando à formação de especialistas em temas de políticas públicas militares, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos. A segunda é reformar a Escola Superior de Guerra, mudando-a do Rio de Janeiro para Brasília e transformando-a no que me pareceu uma espécie de think-tank governamental.. A idéia é boa, cabe discutir agora como se dará a relação da ESG com os centros militares de altos estudo, como a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e a Escola de Guerra Naval, ambas de excelente nível.

A terceira proposta é mais controversa e no meu juízo é onde a Estratégia é falha. Optou-se por preservar o serviço militar obrigatório e complementá-lo com um serviço civil que absorva os rapazes dispensados, e acolha também as mulheres. Essa é a contramão das tendências internacionais, que apontam para a profissionalização das Forças Armadas, com recrutas servindo pelos vários anos necessários para adquirir o treinamento em tecnologias avançadas que é parte essencial da guerra moderna.

A história do recrutamento obrigatório no Brasil está ligada às campanhas nacionalistas e de afirmação da cidadania do início do século XX, e da própria consolidação das Forças Armadas como uma instituição nacional, acima das polícias estaduais e da guarda nacional. Longo processo que começou na Guerra do Paraguai e só se completou após a Revolução de 1930. Contudo, os tempos hoje são outros. Ilusão achar que o serviço militar irá integrar jovens de classes sociais distintas num país tão desigual quanto o Brasil, só uma escola pública de ensino fundamental de qualidade poderia fazer isso. Além do quê, tenho dúvidas sobre a viabilidade orçamentária e legitimidade política de uma expansão tão ampla do recrutamento em tempos de paz.

A terceira perna do tripé da Estratégia aprofunda um tema tradicional do pensamento militar brasileiro: o vínculo entre defesa e desenvolvimento. Basicamente, aponta a relevância do pais ter tecnologia em setores prioritários como espacial (satélites, GPS), cibernético e nuclear, frisando a criação de avanços duais, que se apliquem também ao mundo civil. Anuncia a formação de uma secretaria no Ministério da Defesa, para centralizar compras governamentais e política industrial na área militar, e levanta a possibilidade de ações conjuntas no âmbito da Unasul. Daí a importância da recente criação do Conselho de Defesa Sul-Americano.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A Cúpula da América Latina



No fim dos anos 80, os paises latino-americanos haviam mediado com significativo grau de sucesso as guerras civis da América Central e isso despertou expectativas de que pudesse se consolidar uma concertação permanente entre as nações do continente. O resultado foi a criação do Grupo do Rio, cuja atuação foi em grande medida decepcionante porque os interesses da região se fragmentaram, com o México e seus vizinhos buscando uma vinculação mais profunda com os Estados Unidos. De alguns anos para cá essa tendência começou a se reverter, e a Cúpula da América Latina e Caribe (Calc) realizada esta semana em Salvador ilumina vários aspectos interessantes desse processo.

Primeiro, temos a ação concertada entre as duas maiores nações da região, Brasil e México, que têm superado divergências político-econômicas históricas e encontrado maneiras de agir conjuntamente no comércio, nos investimentos e no reforço aos mecanismos multilaterais de negociação. O governo mexicano está no meio de uma séria crise com relação à segurança pública e ao enfrentamento da corrupção policial, que interessa em muito aos brasileiros, que sofremos dos mesmos problemas.

Segundo, temos o retorno de Cuba ao sistema interamericano, do qual está suspensa desde a crise dos mísseis em 1962. Há questões relativas à democracia e às liberdades civis e políticas que não são pequenas, mas a melhor maneira de trabalhá-las é reincorporando o regime cubano aos fóruns latino-americanos. Décadas de isolamento em nada contribuíram para liberalizar as práticas adotadas por Havana. No entanto, Cuba segue fora da Organização dos Estados Americanos, que critica como um instrumento dócil dos EUA.

Terceiro – e mais complicado – há a necessidade de manter os canais de negociação e diálogo abertos em uma conjuntura difícil. A crise econômica afeta de maneira rigorosa os vizinhos brasileiros, mais dependentes de poucos produtos primários cujos preços estão em declínio. Daí os casos da moratória do Equador, as pressões protecionistas na Argentina e as questoes suscitadas pelo ingresso da Venezuela como membro pleno do Mercosul. A Câmara dos Deputados do Brasil aprovou com folga a iniciativa, mas a votação no Senado deve ser mais disputada.

Infelizmente, persistem problemas nos processos de integração regional na América Latina. O Mercosul não conseguiu solucionar o obstáculo da dupla cobrança de sua tarifa externa comum, e a recém-criada Unasul ainda não obteve consenso a respeito de sua estrutura administrativa.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A Sapatada



Atire a primeira pedra quem não gostaria de repetir o gesto do jornalista iraquiano Muntazer al-Zaidi e jogar um sapato no presidente Bush.

Infelizmente o governo do Iraque libertado não tem muita simpatia por protestos heterodoxos e o repórter está preso, pode pegar 15 anos de cadeia e, segundo as denúncias, foi espancado pelos guardas e está com alguns ossos quebrados.

Nestes tempos de You Tube, o uso criativo das novas tecnologias de informação faz com que críticas inusitadas e bem-humoradas circulem rapidamente. O Sergio Leo fez um apanhado hilariante dos vídeos que parodiam a sapatada iraquiana. Meu favorito é o do Matrix.

Menção honrosa também para as análises pseudo-culturalistas que falam da suposta especificidade árabe, em que é ofensa mostrar a sola do sapato para alguém. Ora, meus queridos, em qualquer país jogar uma bota no seu interlocutor é sinal de que ele fez algo muito ruim para você – como invadir sua nação e matar dezenas de milhares de inocentes, por exemplo.

Sapatos à parte, a agressão a Bush serve como ilustração de uma tendência de diversos estudos sobre o panorama da segurança internacional: os problemas para os Estados Unidos não vem de rivais ricos, mas do países em desenvolvimento. Nações empobrecidas e devastadas pela guerra, que são um ninho de marimbondos para extremismo político, terrorismo, disseminação de epidemias etc. Como tais estudos são preparados por técnicos do hemisfério norte, há sempre a preocupação com a migração, sobre o que aconteceria se essas pessoas resolverem fugir para os EUA e a Europa. O problema de um é a solução do outro.

O link acima vai para o blog de Duncan Green, um dirigente da ONG britância Oxfam, instituição que publica algumas das melhores pesquisas e reflexões que conheço sobre temas como comércio internacional, agricultura familiar e meio ambiente. Green chama a atenção para como muitos dos debates políticos travados nas organizações multilaterais ainda são marcados por perspectivas estreitas em termos de classe social, gênero, etnia.

O mundo precisa de horizontes mais amplos. Ou vão faltar sapatos.

Pós-Escrito: Patricio dá a dica de um site onde o visitante desfrutar de um jogo cujo objetivo é acertar um sapato em Bush. Boa prática!

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Detroit em Ponto Morto



A situação de semi-falência da GM e da Chrysler, com a Ford também à beira do colapso, é a crônica de uma morte anunciada há pelo menos trinta anos, diante das dificuldaes crescentes das grandes empresas automobilísticas americanas em competir com suas rivais japonesas, em especial a Toyota. O campo de batalha decisivo são os mercados emergentes: China, Índia, Brasil. A crise atual apenas colocou o prego no caixão, e aumentou o poder de pressão dos executivos e funcionários da indústria para pedir socorro financeiro ao governo.

Contudo, essa tarefa será mais difícil do que foi para os bancos e instituições financeiras. O Senado rejeitou o pacote de ajuda que o presidente Bush havia conseguido aprovar na Câmara. Ironias da política, a derrota foi em grande medida fruto da ação de parlamentares republicanos, descontentes com o que viram como a concessão de amplos poderes ao sindicato da categoria, a United Auto Workers. A solução (?) de curto prazo encontrada pela Casa Branca foi remanejar para Detroit parte dos fundos destinados a Wall Street.

Como as notícias dos Estados Unidos pioram a cada dia, a derrota no Senado vem em conjunto com a prisão de um ás do mercado financeiro, Bernard Madoff, acusado de fraudes que podem chegar a US$50 bilhões. Em momentos de maior glória, Madoff presidiu a Nasdaq, a bolsa de empresas de alta tecnologia. Mas mesmo agora não ficou muito tempo atrás das grandes, pois foi solto após pagar fiança de US$10 milhões.

Regulação é a palavra de ordem na agenda pública americana, mas os sucessivos fracassos nesse campo deixam reservas quanto à capacidade de implementar medidas bem-sucedidas. Por exemplo, o governo cogita criar o cargo de “czar da indústria automobílistica”, para supervisionar a ajuda às empresas e comandar suas decisões de investimento com poder de veto. Esse tipo de relacionamento lembra o que ocorre no Japão e nos Tigres Asiáticos, mas nem mesmo lá as autoridades têm tamanha influência direta sobre as decisões corporativas. Especula-se que o czar seria o veteraníssimo ex-presidente do Fed, Paul Volker – que já tem 81 anos!

Não sei quanto a vocês, mas eu vou comprar um Volkswagen.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Do AI-5 à Constituição de 1988



Neste sábado se completam 40 anos do Ato Institucional Número 5, o “golpe dentro do golpe” que inaugurou o período de maior repressão, e maior crescimento econômico, da ditadura militar brasileira. Os principais jornais deram destaque ao aniversário, publicando cadernos especiais, em geral ressaltando que a maior parte da elite política do país (seja no PT, PSDB ou PMDB) ingressou na vida pública na oposição ao regime. Até a Arena, o velho partido de apoio ao regime autoritário, agora se auto-entitula democrata. Que bom que eles mudaram de idéia, não é?

Em termos acadêmicos, vale chamar a atenção para o lançamento do livro “Tempo Negro, Temperatura Sufocante: Estado e sociedade no Brasil do AI-5”, coletânea de artigos organizada pelos historiadores Oswaldo Munteal Filho, Jacqueline Freitas e Adriano de Freixo. A qualidade dos ensaios varia bastante, mas dois se destacam como primorosos: o estudo do dilplomata Paulo Roberto de Almeida sobre o envolvimento do Ministério das Relações Exteriores na repressão política, e o de Victor Gentilli a respeito da imprensa naquele período difícil.

O AI-5 foi o marco simbólico mais importante da radicalização da ditadura, mas o embrutecimento não parou nele: foram ao todo 17 AIs, mais 104 atos complementares, que formaram um impressionante arcabouço jurídico para a repressão política. Essa legislação baniu eleições para presidente da República, governadores estaduais, prefeitos de cidades importantes, cassou mandatos e direitos políticos, baniu cidadãos que discordavam dos ditadores, censurou artes e imprensa e até reestabeleceu a pena de morte, banida desde a Constituição de 1891. Curiosamente, não permitiu a tortura, os esquadrões assassinos do regime operavam à sombra do aparato legal, mesmo sob as leis da ditadura.



O contraponto do AI-5 é a Constituição de 1988, que estabeleceu as bases institucionais para a democracia em nosso país, com um tratamento impecável dos direitos humanos e das garantias às liberdades individuais diante do arbítrio do Estado, com realce para o papel ativist a do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público nessas defesas.

É bem verdade que na ânsia de dar conta das demandas reprimidas pelos longos anos de autoritarismo, os constituintes exageraram algumas vezes na dose e legislaram sobre tudo: da taxa de juros ao caráter federal do colégio Pedro II, tudo encontrou espaço na Carta Magna. Também critico o modelo de federalismo que ela criou, na qual a União é obrigada a transferir muitos recursos aos estados, sem que esses compartilhem a responsabilidade pela tributação, e acredito que poderiam ter sido encontradas alternativas mais flexíveis ao Regime Jurídico Único do funcionalismo público.

Num país de jovens como o Brasil, 40 anos é muito tempo e 20 ainda não são suficientes para afirmar que completamos a criação das instituições democráticas. O país passou por provas difíceis nesse período: enfrentou a “década perdida” de 1980, com hiperinflação e pacotes traumatizantes, viu o Estado nacional-desenvolvimentista entrar em colapso e ensaiou reformas econômicas significativas. O crescimento do PIB foi baixo e errático, mas todos os indicadores sociais melhoraram e até o velho fantasma da desigualdade começou a recuar, embora permaneça intoleravalmente alta.

Ainda há um abismo entre o país legal e o real, entre as sólidas leis democráticas que temos na Constituição e a realidade tantas vezes sombria, marcada pela violência, pelo controle que o crime organizado exerce sobre áreas (de favelas e bairros de periferia até tribunais de justiça) e pela fragilidade de instituições tão fundamentais quanto a polícia, a escola pública e os partidos políticos. Falta muito, dolorosamente muito, para afirmar que o Brasil é um país justo, mas neste dia de memória acho que já é possível dizer que melhoramos bastante e que ao menos estamos no caminho do sonho da nação que queremos.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Homem no Escuro


Os Estados Unidos como uma casa em luto, e um país em guerra consigo mesmo, são as imagens mais fortes do recente romance de Paul Auster (foto), Man in the Dark, lançado há três meses. Eu havia me acostumado a pensar no escritor como um cronista de Nova York e me surpreendi com seu mergulho na análise psicológica e no comentário político. Agradeço ao André, que emprestou esta bela história como mais um de seus inumeráveis gestos de amizade e gentileza nesta minha mudança para Brasília.

O personagem-título do livro é um velho e bem-sucedido crítico literário, August, que passa uns tempos com sua filha, para se recuperar de um acidente. Ele enviuvou há pouco, ela é recem-divorciada. A outra moradora da casa é a neta de August, Katya, cujo namorado morreu na guerra do Iraque, em circunstâncias terríveis que só são esclarecidas ao fim do romance.

Nessa casa marcada pelo luto e pelo sentimento de perda, August passa uma noite insone, imaginando uma história na qual o conflito do Iraque nunca aconteceu, em seu lugar há uma nova guerra civil nos EUA, na qual estados secessionistas buscam se separar do governo federal após a eleição de George W. Bush, rejeitando não só a conturbada eleição de 2000 como as políticas do presidente.



Num dado momento, a neta se junta a August e eles começam a conversar. O avô lhe conta a história de seu próprio casamento, de suas idas e vindas com a esposa e as confidências fazem com que a jovem Katya finalmente desabafe sua dor e frustração com a morte do namorado, um ex-pupilo de August que sonhava com uma carreira como escritor, mas duvidava de seu talento literário. Seu fim trágico no Iraque é particularmente brutal, uma ilustração do que há de mais perverso no mundo pós-11 de setembro.

Man in the Dark é um livro triste, um olhar doído sobre as mazelas dos Estados Unidos atuais. Não há a ironia de outros trabalhos do autor, embora haja espaço para muita suavidade e ternura, nas lembranças de August sobre sua história de amor e uma carreira em torno de valores humanistas e da boemia intelectual de Nova York, que parecem pertencer a uma época distante, há muito morta.

Katya e o avô passam parte da noite insone conversando sobre cinema e discutindo detalhes de filmes clássicos como “A Grande Ilusão” e “Ladrões de Bicicleta”. A discussão mais tocante trata de “Era uma Vez em Tóquio”, de Yasujiro Ozu, em particular da famosa cena na qual uma moça pergunta para a viúva de seu irmão: “A vida é decepcionante, não é?”. Auster se concentra na resposta desiludida, “Sim, ela é”. Mas o escritor se esqueceu de que a jovem diz isso com um dos sorrisos mais encantadores já registrados pelo cinema. Infelizmente, em meio ao terrorismo e à crise econômica os Estados Unidos não estão muito para sutilezas sobre o lado agriodoce da vida. Como August, estão insones no escuro, à espera da luz que talvez venha com a manhã.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Memórias da Grande Depressão


A taxa de desemprego nos Estados Unidos alcançou seu patamar mais elevado em 35 anos, com mais de 500 mil pessoas perdendo seu trabalho somente em novembro. Neste contexto, muita gente tem pensado na Grande Depressão. O próprio presidente do Fed, Ben Bernanke, é autor de um estudo clássico sobre o período. Na sexta-feira, o Valor publicou uma bela reportagem sobre a época em seu caderno cultural, usando como gancho o lançamento de nova edição do romance “As Vinhas da Ira”, de John Steinbeck.

O livro conta a história de uma família de agricultores sem terra que migram do Meio Oeste para a Califórnia, atravessando uma área paupérrima e semi-árida conhecida como Dust Bowl. Pelo caminho, encontram os escombros do sonho americano, a exploração e a violência dos grandes proprietários rurais e as condições aviltantes de acampamentos de trabalhadores temporários. Em suma, o “Vidas Secas” americano.

A reportagem do Valor contrasta o romance de Steinbeck com estudos acadêmicos mais recentes, que relativizam a situação que ele retratou, afirmando que o quadro geral não era tão ruim. Talvez não fosse, mas dificilmente seria percebido dessa maneira numa época em que o desemprego atingiu 25% e o PIB caiu por anos seguidos – o nível de 1929 só foi recuperado em 1939. Tudo isso numa época em que ainda não existiam as atuais redes públicas de proteção social e a própria teoria econômica tateava em busca de instrumentos que pudessem lidar com uma crise daquela brutalidade.

A resposta keynesiana foi que o governo deveria atuar no sentido de estimular a demanda agregada, provocando um efeito multiplicador por meio da elevação de gastos públicos, mesmo que às custas de déficit durante alguns anos. O Estado poderia até colocar as pessoas para cavar buracos, escreveu Lord Keynes, contanto que gerasse renda e movimentasse economia. Medidas que rompiam com a boa doutrina de buscar o equilíbrio do orçamento, e que respondiam aos anseios da população, apavorada com a deflação persistente. Os preços dos produtos agrícolas foram particularmente afetados, levando muitos pequenos fazendeiros ao nível do desepero e da fome.

O New Deal do presidente Roosevelt reuniu diversos instrumentos desse tipo, de eletrificação rural à construção da indústria bélica, passando por um interessantíssimo programa cultural, parte da Works Progress Administration, que contratou mais de 5 mil artistas para tarefas variadas, como pintar murais, encenar peças teatrais em bairros pobres, recolher folclore e lendas populares. A reportagem do Valor aborda um pouco essa rica experiência, e se você quiser saber mais recomendo o filme “O Poder Vai Dançar” (The Cradle Will Rock), com um elenco fantástico dirigido por Tim Robbins.

O Valor cita, com justiça, a fotógrafa Dorothea Lange, cujas imagens são verdadeiros ícones da Grande Depressão, como o retrato da Mãe Migrante que ilustra muitas narrativas sobre o período, e que abre este post. Mas infelizmente o jornal esqueceu de mencionar Studs Terkel. O jornalista foi um pioneiro da história oral, entrevistando pessoas comuns nos Estados Unidos a partir da crise, criando perfis inesquecíveis. Terkel faleceu há algumas semanas, com quase 100 anos, e a meu ver a cobertura da imprensa esteve aquém do reconhecimento que ele merece.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Trabalho de Equipe


Esta última semana tem sido bastante puxada no curso de formação. Começamos o módulo sobre economia, que irá até o fim do mês e andamos com muito trabalho. Já discutimos as questões internacionais, como o auge e o declínio dos sistemas monetários (padrão ouro, Bretton Woods), e agora debatemos os rumos e descaminhos da trajetória brasileira desde a Revolução de 1930. Hoje, por exemplo, o dia será dedicado aos planos de combate à inflação que dominaram o cenário do país nos anos 1980. Uma particularidade do curso é a ênfase dada às tarefas em equipe. Como trabalharemos em conjunto quando formos gestores de políticas públicas, o método pedagógico ressalta a importância de aprendermos a conviver e cooperar em meio a um grupo de quase 100 pessoas, com carreiras e histórias de vida diversas.

Alguns desses trabalhos coletivos são simples, como os que fazíamos na escola. Por exemplo, preparar uma apresentação oral a respeito de um texto lido para o curso. Mas a maioria é de um nível de complexidade mais elevado. Ao longo das últimas semanas elaboramos conjuntamente um esboço de Constituição, um projeto de reforma política (ambos resultaram num país curiosamente diferente, com sistema parlamentarista e voto misto majoritário/proporcional, à alemã) e escrevemos análises sobre os altos e baixos da Rodada Doha da OMC e sobre como o estrangulamento externo ditou os rumos da industrialização brasileira.

Naturalmete, é mais complicado chegar a consensos envolvendo seis ou sete pessoas, mas a experiência também é bem mais gratificante do que o trabalho individual. É fantástico poder contar em grupos assim com pessoas especialistas em, digamos, agricultura familiar ou mecanismos de controle de constitucionalidade, ou no funcionamento de associações empresariais. Se não dá para aprender por osmose, ao menos a convivência com colegas e o papo na hora do cafézinho ensina bastante.

Os trabalhos de grupo podem valer uma percentagem elevada da nota para cada eixo, até 50% dependendendo do professor. O resto vem por um exame individual, do tipo dissertativo. Na sexta-feira passada fizemos a prova para os módulos de "Estado, Sociedade e Democracia" - isto é, ciência política. Tivemos que responder a três perguntas, mais ou menos assim:

1-Discutir as formas de legitmação do interesse público no Brasil a partir de um livro estudado no curso, sobre as "Gramáticas políticas" do país.

2-Explicar o que são instituições e sua importância na consolidação ou na obstaculização da democracia brasileira.

2-Argumentar se o sistema político brasileiro favorece as minorias ou as maiorias, e dizer o porquê da escolha.

Como vocês podem ver, não é fácil virar tecnocrata. O esforço exigido pelo curso é intenso. Se não fossem pelos dois coffee-breaks diários, já teria caído faminto pelos corredores da Escola Nacional de Administração.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

A Equipe Diplomática de Obama


Para alguém que passou a campanha toda falando sobre mudança, a equipe de política externa de Barack Obama é surpreendemente conservadora. Os principais nomes apontados pelo presidente eleito são figuras respeitadas e tradicionais do establishment americano, a começar pela secretária de Estado, Hilary Clinton, e mantendo o atual secretário de Defesa, Robert Gates.

Muitos compararam a eleição de Obama às duas últimas temporadas da série The West Wing, nas quais um candidato oriundo de uma minoria étnica (latino-americana) saía como azarão no Partido Democrata e vencia um republicano moderado na corrida para a Casa Branca. Na TV, o vitorioso nomeava o derrotado para o cargo de secretário de Estado, sinalizando assim o desejo de governar para além das divisões partidárias. Podemos argumentar que foi mais difícil para Obama triunfar nas primárias democratas do que contra seu oponente republicano (Sarah Palin, claro, ajudou muito), de modo que entregar a condução da diplomacia americana a Hilary Clinton faz bastante sentido.

Não sei bem o que Obama pretende com a manutenção de Gates à frente do Pentágono. Ele é um funcionário de carreira da CIA que chegou a dirigir a organização, e muito respeitado por seu profissionalismo. Talvez garantir alguns meses, ou um ano, de transição tranqüila. Paz sempre relativa, visto que há a promessa de campanha de retirar as tropas do Iraque em 18 meses, além de uma guerra que vai bastante mal no Afeganistão e tensões sérias no Paquistão e no Irã. Além disso, existem problemas graves nas Forças Armadas, como o déficit de jovens oficiais, visto que muitos capitães estão deixando o Exército após cumprirem o período mínimo de alistamento.

Para o cargo de conselheiro de segurança nacional, Obama escolheu o general dos fuzileiros navais James Jones, ex-comandante da OTAN. É um oficial um tanto atípico, conhecido por fazer críticas ferinas às políticas das quais discorda. Ficou conhecida uma de suas declarações, afirmando que os Estados Unidos têm mais pessoas tocando em bandas militares do que em todo o serviço diplomático.

As inovações de Obama vieram no cargo de embaixadora para a ONU, na qual nomeou uma mulher negra, Susan Rice – nenhum parentesco com a atual secretária de Estado. Rice serviu no governo Clinton como uma especialista em África e questões humanitárias e aparentemente levou muito a sério o fiasco americano durante o genocídio em Ruanda. Além disso, Obama elevou a embaixada nas Nações Unidas ao status ministerial, dando à embaixadora assento em seu gabinete. Isso havia ocorrido na década de 1960, na administração Kennedy e um sinal promissor de que Washington voltará a levar a sério os debates multilaterais, quem sabe com um papel mais firme em Darfur e no Congo, dado o perfil de Rice.

Minha curiosidade é saber quem será escolhido para o USTR, ou seja, o principal negociador comercial dos Estados Unidos. É de esperar que teremos um momento bastante protecionista naquele país, com implicações sérias para a OMC.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Elegia para Mumbai



Entre os dias 26 e 28 de novembro, um pequeno grupo de talvez 10 terroristas atacou a capital financeira da Índia, Mumbai (Bombaim), matando cerca de 200 pessoas numa série de atentados contra restaurantes, praias, estações de trens, hospitais e centros culturais judaicos, culminando com a tomada do Taj Mahal Palace, o hotel mais luxuoso da cidade (mapa acima). As atrocidades foram atribuídas ao Lashkar-e-Taiba, um grupo terrorista com raízes no Afeganistão e no Paquistão, muito ativo na Cachemira. Como as outras organizações extremistas da região, tem vinculos profundos com os serviços de inteligência paquistaneses, e os ataques podem ter sido uma tentativa de inviabilizar a recente tentativa da aproximação entre Índia e Paquistão.

A Índia sofre com terrorismo religioso desde sua independência, ocorrida em meio a confrontos genocidas entre a maioria hindu e a minoria muçulmana que resultaram em um milhão de mortos. Nas décadas seguintes houve diversos atentados comentados por grupos fundamentalistas das duas crenças, ataques lançados por sikhs e tamils, com os assassinatos dos primeiros-ministros Indira e Rajiv Gandhi, e a longa ameaça da guerrilha comunista dos Naxalitas. Após o 11 de setembro, os choques entre hindus e muçulmanos se intensificaram, com os piores momentos acontecendo nos massacres cometidos em nome do hinduísmo em Gujarat e nos atentados perpretados a pretexto do Islã contra o parlamento indiano, que quase levaram a outra guerra entre Índia e Paquistão. O ano de 2008 tem sido particularmente violento.

Mumbai é a cidade mais cosmpolita da Índia, um emaranhado de povos, religiões, culturas e estilos de vida que formam a área mais dinâmica, caótica e fascinante do país. Por seu papel econômico, também é a porta de entrada para os estrangeiros, e não por acaso os terroristas tiveram como alvo exatamente os locais mais freqüentados por pessoas de outros países, em particular dos Estados Unidos e da Europa.

A persistência e aprofundamento da democracia indiana em meio a essa história sangrenta é um milagre, totalmente inesperado diante das previsões das teorias tradicionais da ciência política. Mesmo em constraste com as atrocidades do passado, os ataques dos últimos dias em Mumbai foram chocantes e diversos altos funcionários indianos da área de segurança renunciaram a seus postos, embora ainda não esteja claro se a decisão é definitiva.

O Partido do Congresso, atualmente no poder, enfrenta uma feroz oposição dos nacionalistas hindus do BJP, e precisa lidar também com a fúria e a indignação da população, que se sente desprotegida e acusa o governo de negligência diante do terrorismo. É provável que nas próximas semanas sejam apresentadas novas leis de combate ao terror, e algum tipo de reorganização administrativa, com reforma ou criação de órgãos públicos para enfrentar a ameaça.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Vicky Cristina Barcelona



O novo filme de Woody Allen é charmoso, engraçado, sensual, inteligente e emana uma luz dourada e uma alegria de viver tão contangiantes que dá vontade de lamber a tela, mesmo naquelas cenas em que Scarlett Johanson e Penélope Cruz não aparecem. É um hino ao caos e à imprevisibilidade da vida, às muitas verdades que ela possui e um convite para que os Estados Unidos saiam de seu insulamento neurótico e se reconciliem com os valores humanistas da cultura européia - não por acaso, esta é a quarta produção seguida que o cineasta roda fora de seu país natal.

Essas reflexões se dão a partir de uma trama simples. Amigas americanas de temperamentos opostos, Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett), vão passar o verão na Espanha e se envolvem numa ciranda amorosa com artistas talentosos e turbulentos, o pintor Juan Antonio e sua ex-mulher María Elena, interpretados pelos espanhóis Javier Bardem e Penelope Cruz. O pano de fundo é o contraste entre a beleza das paisagens e cidades da Catalunha e a prosperidade apática dos cidadãos dos EUA radicados no Velho Mundo.

Há um quê de Henry James em Vicky Cristina Barcelona, no sentido em que Allen trabalha um tema caro ao romancista: a perda da inocência americana por meio do contato com a sociedade européia mais sofisticada e complexa. O sentimento é reforçado pela narrativa em off do filme, de grande beleza literária. Contudo, James lidava com a questão da corrupção moral. Allen trabalha em outro registro. Não ocorre degeneração dos costumes (ainda que possa parecer assim à primeira vista), e sim o questionamento dos valores e comportamentos tradicionais, com o abandono do conformismo e da fachada de felicidade ilusória, e a busca de uma vida autêntica, de emoções verdadeiras, mesmo que ao custo de tristezas, dúvidas e frustrações para os protagonistas.



Grandes artistas com freqüência só conseguem falar de si mesmos, mas ao fazê-lo, expressam muitas pessoas, como se soprassem em nosso ouvido uma mensagem que julgamos ser apenas para nós. Vicky tem muito em comum com os personagens típicos de Allen, com suas neuroses, seu medo de viver, suas inseguranças. Cristina parece dar voz às suas inquietações, sua rejeição do materialismo americano e sua procura por arte de valor, mesmo que não saiba bem qual caminho trilhar. Me pareceu que os personagens de Javier e Penelope são menos interessantes, porque eles não se transformam ao longo do filme. Estão lá apenas como catalizadores, como elementos explosivos e dinâmicos que forçam as duas amigas americanas a enfrentar seus fantasmas.

O filme tem cenas belíssimas, de uma falsa simplicidade, que na realidade escondem um artesanato de mestre na preparação dos cenários, figurinos e no desempenho dos atores. Minhas favoritas são as seqüências em que Vicky ouve música espanhola, uma de suas paixões. Há uma da qual gostei particularmente: ela está num jantar enfadonho com o marido e amigos, na qual a conversa fala de brinquedos tecnológicos que dão a ilusão de conectividade ao mundo. E seu olhar vagueia até o músico que toca uma melodia linda, e os espectadores podemos intuir que ela sonha com o amor profundo que teme concretizar.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Eleições na Venezuela


Chávez venceu as eleições regionais da Venezuela, realizadas no domingo, ganhando 17 dos 22 estados. Contudo, a oposição triplicou seus ganhos e levou as áreas mais ricas e populosas do país, como as cidades de Caracas e o complexo petrolífero em Zulia e a zona industrial de Carabobo. Os resultados também mostraram as fissuras no chavismo e apontaram para a possibilidade da renovação do sistema partidário venezuelano. Tudo isso no contexto da queda dos preços do petróleo, cujo barril agora está um pouco abaixo dos US$50.

O desempenho mais expressivo por parte da oposição veio do partido Primero Justicia, que surgiu como uma ONG que prestava assistência jurídica em áreas pobres da Venezuela. O PJ foi muito bem na região metropolitana de Caracas, inclusive no complexo de favelas de Petare. O partido vai governar quase metade da população do país.

Chávez reuniu seus seguidores no Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), mas houve conflitos significativos entre a militância de base e a elite do chavismo. Em Barinas, estado natal do presidente, o partido optou por um candidato que desagradou o mandatário. Ele o substituiu por seu irmão mais velho, que venceu as eleições e sucedeu o pai de Chávez no governo estadual. O presidente também optou por ampliar o diretório nacional do PSUV, de modo a nomear pessoas mais de sua confiança do que os que foram escolhidos pela militância. Tensões semelhantes ocorreram nas relações entre o chefe de Estado e os conselhos populares de bairro que criou em seu governo. Já existe até um partido formado por ex-chavistas, o Podemos.

Governo e oposição procuraram interpretar os resultados eleitorais como uma espécie de plebiscito sobre Chávez, em particular sobre a possibilidade de estender o mandato do presidente, em mais uma reeleição. Tenho minhas dúvidas se essa é a melhor maneira de ler as disputas regionais na Venezuela. Me parece que foram mais importantes os problemas cotidianos, como o aumento da criminalidade e as condições de vida na áreas pobres. São pessoas que valorizam as políticas sociais introduzidas por Chávez, mas que podem estar insatisfeita com sua gestão, em busca de melhorias e inovações.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O Estado e suas Transformações



O tempo na minha vida nova anda tão intenso que é difícil acreditar que a semana tenha apenas sete dias. Na segunda passada começou o eixo de ciência política no curso de formação, e tivemos os módulos dedicados às transformações do Estado e à cidadania no Brasil, ministrados por professores da Unicamp e da USP. Uma bem-vinda novidade para mim, acostumado ao estilo e às abordagens teóricas do Iuperj. O tema que atravessou todas as aulas foi o papel estatal na promoção do desenvolvimento econômico.

Os marxistas clássicos afirmavam que o Estado era o instrumento da aplicação do poder das classes dominantes. Os neo-marxistas que escreveram a partir da década de 1960 refletiam de maneira mais sofisticada. Tinham que explicar o surgimento do Welfare State e o estabelecimento de uma série de direitos sociais. De modo que autores como Nicos Poulantzas e Claus Offe chamaram a atenção para a relativa autonomia do Estado diante das classes sociais, e de como às vezes era interessante para as próprias elites que isso acontecesse, pois assim aumentava a estabilidade do sistema e diminuia o conflito social.

Muitos estudiosos dos países em desenvolvimento examinaram a presença da autonomia estatal como um dos elementos-chave para a modernização da economia. A situação contrária seria a “captura” do Estado por conglomerados empresariais, pequenos grupos étnicos ou familiares, ou qualquer conjunto de pessoas que procurasse reduzir as instituições públicas a interesses particulares.

O autor com a visão mais rica a esse respeito é o sociólogo americano Peter Evans. Ele cunhou três tipos ideais (isto é, construções teóricas) de Estado: o predatório, simbolizado pelo Congo/Zaire da ditadura de Mobuto; o desenvolvimentista, representado pelos tigres asiáticos (Coréia, Taiwan) e o modelo intermediário, em que se destacam Brasil e Índia. Para Evans, o paradigma bem-sucedido é aquele em que os órgãos estatais têm a “autonomia inserida” (embebbed autonomy). Ou seja, transitam numa linha de difícil equilíbrio entre o isolamento das pressões sociais na hora de decidir e implementar políticas públicas, mas têm seus tecnocratas como parte de densas redes de contatos formais e informais que os vinculam aos grandes grupos empresariais.

Traçar com precisão a diferença entre autonomia, autonomia inserida e um Estado insulado, fechado e isolado da sociedade, é bastante complicado e rendeu um dos mais ricos debates acadêmicos dos quais já participei, porque os colegas trouxeram suas experiências concretas em diversos órgãos públicos. De modo geral o consenso entre os pesquisadores é que o Estado brasileiro como um todo deixa muito a desejar, mas que possui “bolsões de eficiência” ou “ilhas de excelência”, formadas por órgãos como BNDES, Petrobras, Sumoc/Banco Central, o antigo DASP da Era Vargas, o Ministério das Relações Exteriores e outras mais, inclusive (quero crer) minha própria carreira.

Há uma cientista política americana, Barbara Geddes, que também aborda o tema e escreveu o excelente livro “Politican´s Dilemma – building state capacity in Latin America”. Seu argumento é que os políticos precisam de uma tecnocracia capacitada, capaz de transformar decisões em ações de Estado. Mas também necessitam distribuir cargos para aliados, mesmo que essas pessoas não sejam competentes e qualificadas. Quanto mais frágil a base de apoio do presidente, mais ele terá que recorrer ao clientelismo e à troca de favores.

Geddes construiu uma tipologia muito interessante, de quatro grandes estratégias para líderes políticos no que toca às relações com a burocracia: reforma do serviço público; compartimentalização – isto é, a criação das tais ilhas de excelência; partidarização da administração pública e “sobreviência imediata”, na qual o risco de deposição é tão grande que vale tudo para manter o presidente no poder.

A crise financeira mundial está reforçando a atuação do Estado na regulação e na promoção do desenvolvimento. Meu palpite é que veremos novas e instigantes pesquisas sobre esses temas.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A Hora Azul


“Um conto de fadas ao contrário”, assim o escritor peruano Alonso Cueto descreveu seu romance “A Hora Azul”, uma das melhores abordagens do tema da memória histórica a surgir na América do Sul contemporânea. No caso, o acerto de contas de certa elite do Peru com a guerra suja contra o Sendero Luminoso, entre 1980-1992.

O livro é narrado por Adrián, um próspero advogado que vive uma rotina pacata em Lima, com um casamento estável e duas filhas adoráveis. Sua própria história é um tanto mais confusa: os pais se divorciaram quando eram pequenos e ele foi basicamente criado pela mãe, teve pouco contato com o pai, um oficial da Marinha. Também não vê muito o irmão, que mora nos Estados Unidos.

O que detona a trama é a morte da mãe. Num conversa com o irmão, vêm à tona incômodos segredos familiares, relativos às atrocidades que o pai cometeu quando serviu na província de Ayacucho, o epicentro da guerra contra o Sendero. Nos papéis maternos, Adrián encontra pistas que podem levá-lo a uma mulher que fora torturada pelo pai. Ele se torna obcecado pela história da moça, e viaja até os Andes, e às profundezas da história recente do Peru, para achá-la. O resultado é um intenso envolvimento emocional que o fará questionar os silêncios e os pressupostos de sua vida na gaiola de ouro da elite de Lima. E mudar – ainda que de forma bastante limitada – seu comportamento.



O Sendero tem sido abordado também por outros autores peruanos de primeira linha, como Mario Vargas Llosa e Santiago Roncagliolo. Não é difícil traçar paralelos com a ditadura militar brasileira. Trocando Lima por São Paulo ou Rio de Janeiro, e Ayacucho pelo Araguaia, a trama do romance seria facilmente adaptável à realidade do país. Aliás, a revista Carta Capital usou trechos do livro numa excelente reportagem sobre os processos contra o coronel Carlos Ulstra, acusado de ter cometido algumas das piores torturas cometidas durante o regime autoritário.

A Hora Azul do título é o momento que precede o amanhecer, e que tem significado particular num episódio decisivo na trama. Mas também é uma metáfora para a tomada de consciência, aquele período em que a mente se ilumina e surge uma nova concepção da realidade.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Emergindo...


Com certeza a cúpula estimulará o debate sobre as instituições que supervisionam a economia internacional. Ao reunir o G20 em vez do fechado clube dos ricos do G7, a velha ordem reconheceu na prática que o resto do mundo se tornou importante demais para ser mantido fora da sala. Mas qual nova ordem deve tomar seu lugar?

The Economist

Se alguém esperava um resultado arrasador, de reviravolta, do tipo Bretton Woods, da cúpula das economias do G20 realizada neste fim de semana em Washington... Bem, você não deveria ter esperado algo assim. Quando um grupo desse tipo se reúne pela primeira vez – e apenas brevemente – para discutir problemas importantes que têm implicações políticas para todos os membros, você não pode realmente ter um grande resultado. Mas valerá a pena assistir ao que acontece depois.

Blog Managing Globalization

O módulo de economia internacional do curso de formação de gestores só começará daqui a duas semanas, mas a crise financeira tem sido um dos temas mais constantes de nossas conversas e uma espécie de pano de fundo para muitas aulas. Estou particularmente interessado no papel que os países emergentes podem desempenhar na saída desta situação difícil. A cúpula do G-20, realizada há poucos dias, ilustra as possibilidades e limitações desse enfoque.

O capitalismo é global. Nasceu assim e quanto mais se desenvolve, mais aprofunda esse traço essencial de sua identidade. Contudo, a mundialização da economia convive de maneira tensa e contraditória com o sistema dos Estados nacionais. Os principais atos estatais (investimentos em infra-estrutura, políticas sociais, guerras) são fundamentais para a manutenção e expansão do crescimento econômico. A integração e interdependência das finanças globais demanda mecanismos de regulação e coordenação transnacionais, que ultrapassem os limites estreitos de um só Estado. Mas como obter esse importante bem público em meio às rivalidades nacionais?

O que existe de mais avançado em termos de regulação financeira internacional são os tênues acordos de Basiléia, frutos da preocupação dos bancos ocidentais com seus competidores japoneses, que se beneficiavam de crédito barato, e, como depois se viu, sem base sólida. A segunda rodada de negociações de Basiléia sequer foi implementada e já é considerada obsoleta. As propostas para atualizá-la são polêmicas. A francesa, por exemplo, é bem mais abrangente do que o modelo desejado pelos EUA e pelo Reino Unido.

A tentativa de encontrar um consenso no G20 é ainda mais complexa, porque o fórum mistura países desenvolvidos e em desenvolvimento. A conjuntura atual beneficia estes últimos. Com Estados Unidos, Japão e a Zona do Euro em recessão, as esperanças de recuperação econômica global estão nos emergentes. Não é à toa que no jantar da cúpula, Bush tinha à esquerda o presidente da China, e à direita, o do Brasil. Contudo, a declaração do encontro é vaga com relação aos papéis que serão desempenhados pelas nações do Sul. Mais significativos foram os compromissos em não recorrer ao protecionismo, e tentar reanimar a Rodada Doha da OMC, e o reforço de US$100 bilhões ao caixa do FMI, dinheiro urgente para alguns países politicamente explosivos, como o Paquistão.

O próximo encontro foi marcado para daqui a pouco mais de três meses, já no governo Obama, que estará no início de sua árdua tarefa de colocar a casa em ordem.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Céu de Brasília, Traço do Arquiteto



Se você acompanha este blog há algum tempo, deve saber que há poucos meses fui aprovado no concurso para a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (gestor), que prepara administradores de nível superior para o governo federal. Por conta disso, há uma semana me mudei para Brasília e no dia seguinte iniciei o curso de formação na Escola Nacional de Administração Pública.

O curso durará cerca de cinco meses, com dez horas de aulas por dia. É bastante puxado, com módulos sobre ciência política, economia, administração pública e políticas públicas. Nesta primeira semana houve uma série de atividades visando a integrar a turma e apresentar os pontos principais da formação, incluindo palestras excelentes que explicam a organização do Ministério do Planejamento e da Casa Civil, os dois órgãos responsáveis pela coordenação das ações do governo federal.

O Planejamento é o encarregado da supervisão e coordenação da carreira, mas poderei trabalhar em qualquer órgão federal. De fato, são cerca de 700 gestores no Estado, distribuídos de maneira bastante diversa pelos diversos ministérios: cerca de 30% na área econômica, 20% no campo social e a outra metade dividida em fatias menores de 10% na Presidência da República, Meio Ambiente etc.

Como a carreira de gestor tem um perfil generalista, atrai pessoas com formações e histórias de vida bastante variadas. Na minha turma os grupos mais numerosos são economistas, administradores, advogados, analistas de relações internacionais e oficiais militares. A maioria já morava em Brasília e tinha experiência no serviço público, federal ou estadual. Fiquei surpreso com a pequena quantidade de cientistas políticos – somos apenas quatro, entre quase 100 pessoas. É um número baixo para uma carreira que é um verdadeiro paraíso para essa profissão.

O Brasil tem cerca de 70 anos de tradição em formar tecnocratas de alta capacitação - é realmente impressionante o nível de qualificação dos técnicos que tenho conhecido – e isso se traduz numa prática bastante bem-sucedida em estabelecer políticas públicas de Estado, com grande capacidade de continuidade mesmo em meio às turbulências da história do país. É uma história longa, que vem das reformas empreendidas por Vargas após a Revolução de 1930 (lei do serviço público, criação do DASP e dos institutos de previdência), passa pela modernização administrativa dos anos 40/50 (SUMOC, BNDE, Petrobras) e pelas reformas do início da ditadura militar (Banco Central, unificação da previdência, Ipea).

Infelizmente, o regime autoritário optou por um modelo que privilegiou as empresas estatais em detrimento da administração direta, dos ministérios e da presidência, e que isolou a burocracia da sociedade. A crise fiscal dos anos 80/90 enfraqueceu ainda mais esse quadro, mas após a estabilização econômica a situação começou a melhorar. Nas conversas com os colegas mais experientes, é consenso que o ponto mais baixo foi a tragédia do governo Collor, e que o Estado atual, com todos os seus problemas, avançou muito em relação ao passado recente. É preciso reconhecer a importância das medidas moralizadoras da Constituição de 1988, como o estabelecimento da obrigatoriedade dos concursos para ingressar no serviço público. Minha própria carreira foi criada em 1989, mas ficou quase uma década sem novas contratações.

O ritmo puxado do curso me deixa praticamente sem tempo livre durante a semana, mas aproveitei sexta, sábado e domingo para visitar os amigos que moram em Brasília, e começar a passear por esta cidade, que agora também é minha. Acredito que a maioria dos brasileiros têm uma imagem ruim da capital, mas essa é uma visão injusta. A qualidade de vida é muito alta, há ótimas opções de lazer, um grupo de habitantes que inclui algumas das pessoas mais inteligentes e interessantes que conheço e beleza por toda parte, nos traços de Niemeyer, nas quadras arborizadas e no amplo céu que é o mar daqui. É bom ter chegado, para começar uma vida nova.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

A Canção de Le Carré



Tenho uma queda por romances de espionagem e no gênero meu autor favorito é John Le Carré, que escreveu o melhor do estilo (“O Espião que Saiu do Frio”), uma das mais interessantes variantes sobre o tema da traição (“Tinker Tailor Solider Spy”, ou, como foi batizado no Brasil, “O Espião que Sabia Demais”) e tem produzido ótimos livros sobre o mundo da inteligência no pós-Guerra Fria, no quais se destaca a visão cética de uma era sem ideais, ameaçada por paranóia, ganância e cinismo (“O Jardineiro Fiel”, “Amigos Absolutos”). Seu mais recente livro acabou de ser publicado na Europa: A Most Wanted Man, crítica às torturas e ao programa de “rendições” da CIA, a Operação Condor destes tempos de 11 de setembro. Enquanto o romance não chega ao Brasil, fico com seu penúltimo, recém-lançado por aqui: “O Canto da Missão”, sobre a guerra na Repúplica Democrática do Congo.

Os fãs de Le Carré encontramos nesse livro suas marcas características: a extrema ambigüidade do herói, uma mistura de idealismo, ingenuidade e excitação do protagonista ao se envolver com o mundo do serviço secreto, uma sexualidade conflituosa, que encontra sua redenção no relacionamento com uma mulher de classe social mais baixa do que a do herói, e que o arrasta para o compromisso com uma causa social, ou simplesmente para reavaliar suas atitudes diante da vida.



O romance é narrado por Bruno Salvador, o filho bastardo de um missionário irlandês no Congo, que se tornou um renomado intérprete nas diversas línguas faladas no leste daquele imenso país. Seus talentos raros o tornaram muito requisitado pelas grandes empresas mineradoras que operam na região e ele acaba recrutado pelo serviço secreto britânico para um trabalho numa conferência de delicadas negociações entre chefes da guerra congoleses e um conglomerado empresarial, interessados num acordo político que permita a exploração dos recursos naturais da área e elimine concorrentes indesejados da jogada. À medida que prosseguem os diálogos, Bruno começa a questionar a moralidade da trama.

Não conto mais para não estragar as surpresas de eventuais leitores, adianto apenas que Le Carré construiu personagens extremamente verossímeis para retratar a pior tragédia humanitária do nosso tempo. Esqueça Iraque, Afeganistão ou mesmo Darfur. A guerra no Congo matou talvez quatro milhões de pessoas, em cerca de 15 anos. A maioria morreu de fome ou de doenças. Por coincidência, o conflito está novamente nas manchetes, agora que o líder rebelde Laurent Nkunda ameaça a cidade de Goma, principal abrigo dos refugiados dos massacres congoleses.



O conflito no Congo começou em função do genocídio na vizinha Ruanda. Os líderes hutus que haviam perpretado aquela atrocidade fugiram para as terras congolesas e seus inimigos tutsis levaram a guerra até eles. As batalhas se juntaram ao contexto mais amplo de colapso da ditadura de Mobutu, que governava o país desde a década de 1960. O poder central se fragmentou em dezenas de etnias rivais e os países vizinhos – Ruanda, Uganda, Angola e Zimbábue – intervieram militarmente a pretexto de manter a paz, mas na prática saqueando os recursos naturais congoleses. Não é à toa que o conflito vem sendo chamado de “a primeira guerra mundial da África”.

O Congo tem a maior missão de paz da ONU em campo atualmente, com cerca de 16 mil soldados. O número pode parecer impressionante, mas é irrisório diante de um território do tamanho da Europa Ocidental. Os capacetes azuis recebem um tratamento bastante hostil no romance de Le Carré, seu consolo é que o mesmo retrato é aplicado pelo escritor a todos os protagonistas desta guerra sem heróis. Ainda assim, Le Carré consegue encontrar esperança, a partir das expectativas e ações das pessoas comuns. Ao fim das contas, um olhar mais ameno que em seus últimos livros.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O G-20 e a Crise Financeira



No último fim de semana os países do G-20 estiveram reunidos em São Paulo, numa prévia da cúpula financeira que irá acontecer no próximo dia 15. Há pressões dos grandes países emergentes, que querem mais poder e participação nas instituições econômicas internacionais. Seu trunfo: num momento em que as nações ricas estão em recessão, com seus PIBs encolhendo, é nos mercados em desenvolvimento que se concentra o crescimento mundial.

Esclarecimento: o G-20 do qual falo não é o da OMC, e sim aquele criado em 1999, após as crises financeiras da Ásia e que reúne basicamente o G-7, a União Européia, os BRICs e outros países emergentes de peso, como México, África do Sul e Coréia do Sul. O Brasil atualmente ocupa a presidência rotativa do fórum. O G-20 Financeiro reúne cerca de 90% do PIB e 80% do comércio do planeta.

Não por acaso, as nações que integram o G-20 são basicamente as mesmas cujos bancos centrais assinaram acordos com o Federal Reserve americano, há poucos dias. Pelos arranjos, os EUA emprestam em caráter preventivo alguns bilhões de dólares para que esses países possam evitar que suas moedas se desvalorizem muito com relação à moeda americana. Se isso acontecesse, diminuíram as exportações americanas, fundamentais para que os Estados Unidos possam sair da crise, ou pelo menos evitem se afundar ainda mais nela.

Apesar da euforia com a vitória de Obama, os números que chegam dos EUA não são bons. O desemprego bateu recorde. O presidente eleito apontou uma equipe de assessores econômicos recrutada das administrações democratas anteriores, que não apresenta inovações radicais.

A cúpula paulistana terminou com declaração conjunta pedindo reforma no Banco Mundial e no FMI, e sugerindo a criação de um órgão para avaliar os riscos das economias nacionais. Contudo, há pontos de discordância, em particular o papel que o gasto governamental deve ter na recuperação do crescimento e divergências sobre a inflação. Há muitos que acreditam que o problema atual é a deflação, ocasionada pela escassez de crédio e recessão nos países ricos. Mas analistas do peso de Alan Greenspan têm tido que há pressões inflacionárias não resolvidas, que poderiam afetar negativamente a economia ao mesmo tempo em que o crescimento é eliminado ou diminui. Algo assim ocorreu na década de 1970.

Tampouco está claro se as nações desenvolvidas estão mesmo dispostas a ceder poder decisiorio para os emergentes. O próximo capítulo das negociações ocorre no dia 15 de novembro. O economista Dani Rodrik publicou um texto interessante em seu blog, sobre como ele gostaria que se encerrasse a reunião.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A Declaração dos DH e o Itinerário da Utopia



O Valor publicou na sexta-feira especial (só para assinantes) sobre os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se comemoram daqui a um mês. O jornal convidou seis intelectuais e artistas brasileiros para comentá-la e examinar seus avanços e retrocessos. A data é importante e espero que outras publicações dediquem ainda mais espaço ao tema.

A idéia de que cada ser humano possui direitos inalienáveis, que independem do governo de turno, já estava presente na Grécia Antiga. Em sua forma contemporânea é fruto das revoluções iluministas do século XVIII e foi consideravalmente ampliada pelos movimentos sociais posteriores, como a mobilização operária, as sufragistas, os abolicionistas etc. A partir do século XIX esses direitos passaram a ser codificados em tratados internacionais e de algum modo supervisionados e promovidos por organizações multilaterais, começando com as leis da guerra e da paz (Convenções de Genebra, Conferências de Haia) e seguidas pela Organização Internacional do Trabalho e a Liga das Nações, no período posterior à Primeira Guerra Mundial.

A ascensão do nazi-fascismo e a carnificina do conflito global de 1939-1945 deu nova dimensão ao tema e reforçou a perspectiva de que eram necessários mecanismos para proteger o indíviduo de seu próprio Estado. Embora o tema não fosse propriamente novo – ele aparecera no século XIX sob a forma de intervenções a pretexto de defender minorias cristãs no Império Otomano – adquiriu outra legimitidade à luz do Holocausto e da criação da ONU, com sua intensa agenda anti-colonial.

A Declaração é a peça mais ilustrativa do novo espírito. Constitui o mínimo denominador comum da civilização e da dignidade humana e como tal inspirou dezenas de tratados, leis e constituições nacionais. “O itinerário da Utopia”, como o diplomata brasileiro José Augusto Lindgren Alves costuma se referir às resoluções da ONU, e que se aplica com ainda mais justiça a esse importante texto.

A Declaração é um ponto de partida, e não de chegada. Ela marcou o início de um longo trajeto que resultou, em décadas seguintes, em importantes acordos internacionais sobre os direitos humanos das mulheres, dos povos indígenas, das pessoas com deficiência, conveções de combate ao racismo etc. Hoje falamos nos “direitos de quarta geração”, como paz, meio ambiente preservado e desenvolvimento. No Brasil, o debate sobre o assunto costuma se limitar a apenas um de seus aspectos – a proteção contra abusos de poder por parte de autoridades policiais e militares. Não há desculpa para essa abordagem tacanha.

A América Latina possui um dos mais sofisticados sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, inferior apenas ao dos europeus, e consolidado em torno da Corte Interamericana de DH. Sediado na Costa Rica, esse tribunal tem poder para impor decisões a governos e tem feito história com suas sentenças. O Brasil já sofreu condenações, em temas como situação de presos, de internos em hospitais psiquiátricos e pela sonegação oficial de informações sobre assassinatos políticos durante a ditadura.

A esfera regional tem se mostrado mais eficiente do que a ONU, o que não é de estranhar dada a crise profunda que a instituição tem vivido desde meados da década de 1990. Contudo, houve mudanças para melhor, como as reformas empreendidas por Kofi Annan, que incluíram a criação do Conselho de DH. Aliás, o mais elevado cargo das Nações Unidas nessa área chegou a ser ocupado por um brasileiro: Sergio Vieira de Mello, que foi por breves meses o Alto Comissário para DH. Infelizmente, Annan o forçou a trocar o posto pelo de enviado ao Iraque, decisão trágica que culminou com sua morte num atentado terrorista.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O Homem que Inventou Fidel




Aconteceu em fevereiro de 1957, durou três horas, mudou a vida dos envolvidos, e quem sabe a própria História. O veterano jornalista Herbert Matthews despistou o Exército cubano e entrou na Sierra Maestra, onde entrevistou Fidel Castro, o líder da pequena guerrilha que tentava derrubar a ditadura de Fulgencio Batista. Matthews foi o primeiro repórter a falar com ele depois do início da luta armada, desmentindo a versão governamental de que havia morrido em combate. Rendeu a primeira página do New York Times, transformando Fidel numa celebridade internacional.

Essa é a parte mais conhecida da saga, mas o jornalista Anthony DePalma nos conta mais em seu livro - “O Homem Que Inventou Fidel – Cuba, Fidel e Herbert L. Matthews do New York Times”. Basicamente, como o velho repórter foi seduzido ideologicamente pelo líder guerrilheiro e passou a advogar sua causa e a da Revolução Cubana junto à opinião pública americana, numa atitude que destruiu sua carreira à medida que se radicalizaram as relações entre Washington, Havana e Moscou.

Matthews tinha décadas de experiência a serviço do New York Times quando conheceu Fidel, mas também havia demonstrado perigosa tendência em simpatizar demais com os países/grupos políticos que cobria. Nos anos 30, com o Japão e a Itália fascista. Na Guerra Civil Espanhola, com os republicanos. Escrevia reportagens e editoriais sobre a América Latina quando Cuba começava a se tornar um tema importante, e a correspondente local, Ruby Phillips, era próxima ao regime de Batista, ou simplesmente acomodada demais à sua velha rotina para desafiar as fontes oficiais.

Em 1957 os rebeldes mantinham uma pequena guerrilha na Sierra Maestra e um amplo movimento clandestino nas principais cidades da ilha. A entrevista com Matthews foi um sensacional golpe publicitário. O jornalista descreveu Castro como um Robin Hood ou George Washington, dizendo que ele implantaria uma versão cubana do New Deal. Nos meses seguintes, defendeu Fidel daqueles que o acusavam de ser comunista, ou de ser tolerante com colaboradores dessa ideologia, como seu irmão Raúl e Che Guevara.



Entre 1957 e 1959, Matthews foi crucial para angariar a simpatia da opinião pública, e mesmo de vários segmentos da burocracia americana, para a Revolução Cubana. A lua-de-mel dos EUA com o barbudo foi curta. Poucas semanas após sua tomada do poder, começaram as críticas em função dos fuzilamentos e dos primeiros confiscos de propriedades de empresas americanos. Depois vieram a frustrada invasão da ilha, orquestrada pela CIA na Baía dos Porcos, a entrada de Cuba na órbita da URSS, a crise dos mísseis e o início do embargo.

A defesa de Fidel por Matthews foi se tornando cada vez mais impopular. Ele passou a ser vigiado pelo FBI, investigado pelo Congresso, ameaçado e agredido por opositores de Castro, ridicularizado pelos colegas e terminou se indispondo com a direção do New York Times, que o manteve no jornal, mas parou de publicar seus textos. Sobraram poucos amigos – Ernest Hemingway, seu admirador desde a guerra da Espanha, universidades como Stanford, pequenas publicações de esquerda.

Matthews foi considerado herói da Revolução Cubana, homenageado por Fidel. Contudo, Castro o humilhou numa cerimônia, contando uma história – quase com certeza, inventada – de que teria enganado o jornalista fazendo suas parcas tropas marcharem em círculos, para dar a impressão de serem mais numerosas. O que parece ter ocorrido foi outro truque: os guerrilheiros falavam em novidades da “segunda coluna”, quando à época só havia uma. E se vangloriavam de armas e recursos que não tinham. Matthews acreditou neles.

O livro de DePalma tem uma história curiosa. Ele é repórter do New York Times e foi encarregado do obituário de Fidel, para a alegria de sua esposa, uma exilada cubana. Na pesquisa, ficou fascinado com Mattews. Chega a apontá-lo com o percursor do jornalista partidário que se tornou popular nos EUA atuais, como os apresentadores de talk radio. Ok, isso não é elogio. Mas daria uma bela reflexão num curso sobre mídia e relações internacionais, que talvez eu lecione algum dia...

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Hoje, Somos Todos Americanos



A grande "promessa" para o futuro dos democratas eh um senador estadual do Illinois que se chama Barack Obama. Ele eh negro, filho de queniano com norte-americana, eh um bom orador e mantem-se longe de questoes raciais. No contexto da apatica politica norte-americana atual, causou frisson no publico.

Assim meu amigo e então co-blogueiro Bruno descrevia a jovem estrela que despontava na política dos Estados Unidos. Era julho de 2004 e foi a primeira vez que ouvi falar no atual presidente eleito americano.

"Esta é a verdadeira América", dizia ontem uma mulher em Nova York, ao observar a multi-étnica fila de votação. As pessoas se abraçavam e choravam e pela Internet meus amigos na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina me mandavam mensagens falando sobre esperança. No restaurante onde almocei nesta quarta, o entregador - negro - arrastou a cadeira para junto da TV e aumentou o volume para ouvir as notícias sobre a vitória de Obama. Os clientes comentavam que agora as coisas vão mudar nos Estados Unidos. Uma corrente global de esperança e mudança. Hoje, somos todos americanos.

Foi uma campanha excepcional. A mais cara e longa da história dos EUA, conduzida com brilhantismo ímpar pela equipe de Obama, em particular por David Axelrod. Discurso limpo, inteligente, bem executado, que conseguiu a proeza de vencer a luta interna contra a máquina dos Clinton no Partido Democrata, enfrentando depois um Partido Republicano enfraquecido pela crise econômica, por um candidato honrado, mas sem experiência com temas financeiros e uma vice que é uma fábrica de gafes, deslizes verbais e limitações ideológicas.



A campanha e a vitória de Obama restauraram a imagem internacional dos Estados Unidos após anos de guerras, torturas, unilateralismo e tragédias domésticas e externas. A exepcional história de vida do presidente eleito dificilmente teria sido viável em outro país: filho de um dinâmico e esperançoso estudante africano com uma moça branca da pequena classe média do Kansas, infância passada entre a Indonésia e o Havaí, a dor do pai ausente mas a promessa e expectativa que o sucesso paterno em Harvard deixou no jovem Barack, a ascensão acadêmica do jovem inteligente, o questionamento sobre sua identidade e lugar no mundo, o trabalho comunitário nos guetos de Chicago, a pós-graduação em Direito em Harvard e a entrada na política como senador estadual em Illinois, em 2000 - há apenas oito anos, mas parece um universo de distância: "Se existe alguém aí que duvida de que a América é o lugar onde todas as coisas são possíveis, esta noite é sua resposta", disse o presidente eleito à multidão que comemorava sua vitória, em Chicago (acima).


Obama saiu-se muito bem e triunfou em "swing states" (isto é, aqueles que oscliam entre republicanos e democratas) como Ohio e Florida, e em áreas conservadoras como Indiana, Virgina, Colorado e Novo México (veja abaixo a comparação com a eleição de 2004). Os democratas ampliaram a maioria na Câmara dos Deputados e no Senado, dando ao novo presidente uma confortável situação para lidar com o Legislativo. Os desafios são muitos: a crise econômica, as guerras no Afeganistão e Iraque, as tensões no Paquistão e no Irã, a deterioração da saúde pública e da educação fundamental, a mudança climática...



O novo presidente mencionou uma mulher de 106 anos, filha de pais que nasceram escravos, que votou nele ontem. Qualquer eleitor americano com mais de 45 anos tem idade suficiente para ter vivido sob as sombras da Jim Crow, as leis racistas que impediam ou dificultavam a participação eleitoral dos negros e que só foram abolidas com o Ato dos Direitos Civis, de 1964. Naturalmente, as pessoas dessa idade que viveram no sul lembram da época da segregação e do apartheid.. Quando os pais de Obama se casaram, seu relacionamento interracial era proibido em metade dos estados do país.

Existem muitas Américas. Uma delas é a dos pais fundadores, que escreveram uma Constituição onde afirmavam que todos os homens nascem livres e iguais, mas esqueceram de mencionar no rodapé que a dádiva não se aplicava àqueles com azar suficiente para terem nascido seus escravos, isso para não citar as mulheres, de qualquer cor de pele. Outra América é aquela, de milhões de pessoas, que sempre se recusaram a compactuar com a injustiça e o racismo. O país que sonha ser a "cidade sobre a colina", a inspiração para o resto do planeta. Ora, os problemas globais são hoje grandes demais para que possam ser resolvidos por uma só nação, mesmo que seja a mais poderosa que o mundo já conheceu. Mas é bom ver que os Estados Unidos se tornam novamente parte da solução, após tantos anos como parte do problema.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Uma Explicação da África



A África é sempre um tema popular entre meus alunos, que com freqüência me pedem para indicar algum livro que possa servir como introdução ao estudo do continente. Tinha minhas obras de preferência, que recomendava segundo os assuntos favoritos dos estudantes – por exemplo, se queriam pesquisar sobre colonialismo ou conflitos étnicos. Com o lançamento de “A África Explicada aos meus Filhos”, de Alberto Costa e Silva, finalmente encontrei um livro que serve para todos os interessados.

Costa e Silva é um diplomata brasileiro aposentado que foi embaixador na Nigéria e serviu em diversas missões no continente. Certa vez o entrevistei numa Bienal e ele me narrou sua viagem através da África durante o auge da descolonização da região. Nos anos 1990 e 2000, Costa e Silva escreveu livros magistrais que o tornaram, sem qualquer exagero, um dos mais destacados especialistas mundiais sobre os temas africanos. Obras como “A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses”, os ensaios de “Um Rio Chamado Atlântico” e “Das Mãos do Oleiro”, suas memórias de juventude em “Invenção do Desenho” e a biografia do bem-sucedido traficante de escravos Francisco Félix de Souza, um baiano que se estabeleceu na África, pioneiro sombrio das transnacionais brasileiras.

O novo livro é parte de uma coleção da Editora Agir na qual profissionais renomados escrevem introduções aos temas dos quais são conhecedores. Entre os lançamentos, também me deram água na boca o de Bárbara Heliodora sobre teatro, e de Nei Lopes a respeito do racismo. São curtos, com cerca de 150 páginas, e narrados como conversas, com os autores respondendo às perguntas de um interlocutor imaginário.

Costa e Silva apresenta a África integrada às grandes correntes da história e da economia mundial, mostrando como desde a Antigüidade o continente se inseriu nas rotas comerciais dos negociantes muçulmanos, das caravanas que cruzavam o Saara. Mesmo antes de os portugueses contornarem o Cabo da Boa Esperança, no fim do século XV, os europeus já comerciavam em grande escala com os africanos, interessados principalmente no ouro que vinha dos impérios do Mali e de Gana.

Infelizmente, a descoberta e colonização das Américas acabou inserindo a África num perverso sistema de economia do Atlântico, e o resultado foi a escravização de mais de 10 milhões de seus cidadãos. Costa e Silva é um erudito das diversos sistemas escravistas que existiam na região e mostra como a integração no projeto dos impérios europeus revolucionou essas relações de dominação, despovoando áreas inteiras e eliminando diversos povos.

O caso mais impressionante é o do Reino do Congo, que chegou a negociar de igual para igual com o Portugal e ensaiou uma ambiciosa modernização, mas caiu numa armadilha mortal: para importar os produtos que os europeus ofereciam, seu único produto de exportação rentável eram escravos, o que transformou sua economia e sociedade em máquina de guerra e espoliação, inviabilizando a reforma.



Contudo, a tendência dos historiadores atuais têm sido a de ressaltar o quanto o colonialismo europeu na África foi, de fato, uma realidade bastante breve, de cerca de 50 ou 60 anos. Costa e Silva ressalta que até meados do século XIX, a presença européia estava limitada a poucas feitorias e fortalezas no litoral. O que mudou o quadro foram as pressões da revolução industrial por matérias-primas, as rivalidades imperialistas européias (acima, na visão bem-humorada de Eddie Lizzard) e as novas tecnologias militares, em especial rifles e metralhadoras.

Há pouco sobre a África pós-independência, o que é pena, porque valeria ler a versão impressa das palestras de Costa e Silva sobre os conflitos entre cidade e campo – basicamente, em como as elites urbanas africanas prejudicaram a economia impondo impostos altos ao setor agrícola, para tentar modernizar seus países (a tese clássica de Robert Bates). E como essas disputas se vinculam às rivalidades entre os grandes grupos étnicos.

Aliás, este sítio compartilha a alegria dos amigos da Casa de Luanda, que está entre os finalistas do prêmio da Deutsche Welle de melhor blog do mundo! É o único em língua portuguesa, distinção justíssima para o casal de jovens e brilhantes profissionais de desenvolvimento que tocam a Casa. Na torcida por eles!