segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Personal Che



Hoje é o aniversário de 40 anos da morte de Ernesto Guevara e aproveito a data para comentar o excelente documentário “Personal Che”, que vi no Festival do Rio. O filme é dirigido pelo brasileiro Douglas Duarte e da colombiana Adriana Mariño e aborda as interpretações que as pessoas dão ao mito do Che, em diferentes partes deste planeta maluco. Tenho uma grande amiga em comum com o Douglas e batemos ótimos papos sobre suas aventuras, algumas das histórias também estão em seu blog, como as agressões de espectadores revoltados com o que julgaram falta de respeito diante de Guevara.

Na Bolívia, em especial na região na qual o guerrilheiro foi assassinado, há um culto religioso a sua figura, que o venera como santo. Os fiéis frisam a semelhança do Che morto com a imagem de Jesus Cristo e falam sobre o “livro mágico” que ele carregava durante a luta armada e que o permitia transformar-se em pássaro e fugir dos perseguidores. A mescla de Harry Potter com Revolução Cubana tem explicação: numa região de camponeses analfabetos, a figura de um guerrilheiro que levava uma sacola com 15 Kg de livros só pode ser entendida em termos místicos. Eu sabia sobre o culto, mas não imaginava que os fiéis ignorassem que Che era comunista e ateu, para eles tratava-se de um líder religioso. Quando o diretor do filme os questiona sobre isso, leva um chega-para-lá de uma criança.



No Líbano, os cineastas entrevistam a equipe de uma superprodução musical com mais de 100 dançarinos sobre a vida do Che. O espetáculo é muito bonito, assim como a declaração do autor da peça, também médico como Guevara. Ele afirma que precisou colocar uma cena na qual o guerrilheiro discute com sua consciência a respeito das mortes que cometeu, e se pergunta se fez a coisa certa. O motivo: “Sou de um país que passou 30 anos em guerra civil, não posso defender violência política num palco”. , Guevara é um ídolo para os milhares de palestinos que vivem em campos de refugiados no Líbano e que obviamente se identificam com suas lutas.

Na China, o entrevistado é um deputado de Hong Kong, conhecido como Long Hair, um marxista que usa Guevara como um símbolo para atacar o governo chinês e exigir democracia. Em sua própria época, o Che foi admirador de Mao e da China, cujo regime comunista comparava favoravelmente à URSS, que sempre criticou como burocrática e emperrada. Ironias da história, mas o fado dos mitos é sofrer as múltiplas interpretações de seus admiradores, muitas das quais contrariam suas trajetórias de vida.

O máximo da bizarrice é um movimento neonazista na Alemanha que afirma que Che e Hitler lutavam pelos mesmos ideais – como o combate ao imperialismo! - e que não vê problemas em conciliar o internacionalismo de um argentino que lutou em Cuba, Congo e Bolívia com seu próprio ultra-nacionalismo. Como explica o líder do bando: “Não há contradição, os sul-americanos são muito homogêneos.” Claro que prefiro a interpretação dos manifestantes de Mar del Plata, que formaram o rosto de Guevara com bandeiras de diversos países:



Também há espaço no filme para sentimentos mais doces, como o taxista em Cuba que idolatra Che (como todo mundo no país), batizou de Ernesto seu filho e presenteia o moleque com vários uniformes guerrilheiros, mais ou menos como os pais brasileiros dão fantasias do Batman ou do Super-Homem a seus rebentos. A diferença é que o herói dos meninos cubanos existiu. Ou do salvadorenho que emigrou para Nova Jersey, nos EUA, em pleno coração da comunidade cubana anti-Castrista e vive entre um museu pessoal de Che, uma vaga retórica revolucionária, a venda de automóveis usados e brigas com os vizinhos que o acusam de pregar o terrorismo.

O mais legal do filme são os personagens, mas também há entrevistas com jornalistas e professores universitários que de algum modo se dedicam ao Che, como dois de seus biógrafos (o americano John Lee Anderson e o mexicano Jorge Castañeda), o polemista Cristopher Hitchens (sempre provocador e inteligente). O historiador da arte David Kunzle protagoniza um dos melhores momentos do documentário, ao mostrar as diversas representações do Che em cartazes, pinturas e fotos e comentar que aos poucos os artistas foram sumindo com as armas e símbolos militares. Che passou de ícone da guerrilha para um símbolo de rebeldia, justiça e até paz e amor, com direito a pombas e corações.

Qual o seu Che Guevara? Pergunta implícita do filme. Tenho o meu, claro. Repito as palavras de um artigo que escrevi em 2004, ao analisar “Diários de Motocicleta”: “Se o Che dos anos 60 era o mártir da guerrilha, nos primeiros anos do século XXI os latino-americanos redescobrimos um Ernesto que nos lembra valores importantes: inquietude diante da vida, revolta perante as injustiças, necessidade de superar os limites estreitos da classe social e da nacionalidade, vontade de compreender a América Latina em seu conjunto.”

2 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo post. Espero poder ver esse documentário.

Muito pertinentes as preocupações do autor libanês com a violência política. Escrevi um pequeno recordatório no meu blog e uma amiga disse que alguém que fez o juramento de Hipócrates não poderia matar.

Entendo os sentimentos dela, mas existe "a paz que eu não quero", como na música do Yuka.

Maurício Santoro disse...

Olá, Marcus.

O filme foi o melhor que vi no Festival do Rio e recebeu excelentes críticas. Espero que ele seja lançado no grande circuito.

Há um escrito muito famoso de Guevara, no diário de Sierra Maestra, no qual ele conta um momento da guerrilha em que teve que optar entre levar uma caixa com remédios e uma arma, e ficou com esta.

Ele afirma que foi então que desistiu de ser médio e passou a se considerar como, acima de tudo, um homem de armas.

Abraços